Laura nasceu. Não a nossa Laura,
mas uma pequenina que chegou cercada de circunstâncias curiosas. Pois é,
milagres existem! A começar pela aproximação afetiva de duas pessoas, da
evolução interativa, do prazer que origina os demais milagres: a fecundação, o
desenvolvimento e formação de um novo ser e o nascimento. É tecnologia em
estado puro, natural — tecnologia divina para uns, pujança da natureza para
outros. Os adeptos, os fanáticos pela tecnologia queiram desculpar, mas é
impensável imaginar que o homem conseguirá repetir artificialmente esse
prodígio natural. Será?
Voltemos à Laura. Seu pai, um
planejador rigoroso, pensou em tudo a partir do início da gravidez da esposa.
Ele relacionou todos os passos, todas as atividades que teria que executar para
que o nascimento — um evento singular e mágico — tivesse pleno sucesso. O
estado de funcionamento do carro era verificado com frequência incomum na
oficina de seu amigo. O tanque era abastecido com regularidade, de tal sorte que
só era aceitável que a gasolina chegasse, no mínimo, a três quartos da
capacidade. Nos três meses que antecederam o período previsto para o parto, uma
vez por semana, ele dirigia de sua casa até a maternidade — um trajeto de 30
quilômetros — para estar completamente seguro de que, no dia aprazado, não
teria dificuldades no trânsito. Leu a bibliografia disponível e aconselhável
sobre o nascimento de bebês. A mala com todos os objetos recomendados pelas
tias, avós, obstetra e palpiteiros de plantão ficou pronta com dois meses de
antecedência e estava sempre ao alcance da mão.
Enfim, o dia esperado chegou. No
final da madrugada, a esposa deu o sinal de alerta. A expectativa e a emoção
aumentaram. Estando preparados, ele carinhosamente tomou o braço da esposa,
encaminhando-se para a garagem. Ao abrir a porta do carro, a esposa disse:
— Eu acho que não vou conseguir chegar no hospital. Minha percepção é
que nossa filha quer nascer agora.
— Mas como? O que está acontecendo? Indagou o marido.
— Estou sentindo dores e contrações anormais.
Em seguida, ela deitou-se no piso
da garagem, caracterizando que a situação limite havia chegado.
O marido havia pensado em tudo,
mas não pensou no imponderável. Começou a suar frio, hesitou por alguns
instantes, tentou ordenar o raciocínio e só conseguiu inferir que estava diante
de uma emergência. Então, lhe ocorreu ligar para o telefone 190. Explicou o que
estava ocorrendo e recebeu a recomendação de que tinha que fazer o parto. Seria
o obstetra da própria filha sem ter qualquer conhecimento de enfermagem. A
sorte estava a seu favor. A policial que o atendeu era tranquila, qualificada e
se prontificou em transmitir, passo a passo, a orientação necessária. Recobrado
do susto inicial, o pai colocou o celular no piso, na condição de viva voz, e o
milagre tomou a conformação de normalidade emergencial. Ouvia a orientadora e
retransmitia para a esposa.
—
Você vai
deitar-se, apoiar a cabeça na sacola de pertences, relaxar e respirar
compassadamente.
—
Isso
mesmo, você começou muito bem — Afirmou a policial pelo 190 — Agora diga para ela fazer força.
—
Força,
benzinho!
A policial
tentou caprichar no tom de voz.
—
Não é
desse jeito não. Fale firme, como homem!
Ele tentou
calibrar a firmeza, para não atingir a grosseria.
—
Força,
mulher! Força mesmo! Isso, isso mesmo, está saindo!
Virando-se para
o celular.
—
Saiu a
cabeça e agora?
—
Você tem
que ajudar. Insista para que a respiração seja compassada, para que ela
continue fazendo força. E então pegue a cabeça do bebê e puxe.
—
É para
puxar com força?
—
Com força
não, cara pálida! Com uma firmeza suave, senão você vai arrancar somente a
cabeça do bebê.
—
Ah, bom!
Continua saindo. Os dois ombros já estão de fora!
—
Continue
desse jeito, com calma, transmita confiança para a mãe.
E assim seguiu
por alguns minutos, todos parecendo ter mais de 100 segundos cada um.
—
Pronto,
nasceu! Nasceu! É menina! É a Laura!
A mãe, tão calada até agora, expressou toda a emoção.
— Minha filha! Minha filhinha! Graças a Deus!
—
E que você
fez com ela? Perguntou a policial.
—
Eu a
abracei, eu estou abraçado com ela.
—
Homem
tonto! Com uma das mãos, segure-a cuidadosamente pelos pés, mantendo-a
pendurada de cabeça para baixo e bata com a outra mão nas costas, até ela
chorar e depois, coloque-a sobre o peito de sua mulher. Não esqueça: você não é
a mãe, você é o pai.
—
Já
coloquei. E agora, o que faço?
Você vai cortar
o cordão umbilical, dando-lhe um nó no toquinho que restar junto à barriga do
bebê.
—
Mas como é
que vou cortar? Com que?
—
Você não
tem uma tesoura, uma faca e um pouco de álcool para desinfecção?
—
Aqui na
garagem, só tem alicate ....
—
Homem
alienígena, o alicate, você o pegue, prenda sua própria orelha ou nariz com bastante
força e puxe prá valer.
Após um silêncio constrangedor, a policial continuou.
—
Após
cortar o cordão, espere uns instantes e faça a higiene do bebê.
—
Com que?
Como? No chuveiro?
—
Com as
mãos, com toalhas úmidas e, especialmente, com o intelecto. Você sabe o que é
isso?
—
Não sei
não. Depois eu te telefono prá você me explicar. E depois da higienização? Eu estou
na garagem.
—
Você
permaneça aí com calma e transmitindo tranquilidade para sua esposa. A
ambulância que eu acionei no primeiro momento estará chegando em sua casa em 5
ou 10 minutos. Vocês irão para a maternidade.
E assim a Laura chegou,
sem ter desejado, senão pelos desígnios insondáveis que perpetuam a espécie
humana. Ela se tornou bebê, milagrosa e magicamente! E aguarda tornar-se
menina, moça, mulher e seguir em frente, em busca de seu destino,
preferencialmente, reproduzindo a tecnologia que qualquer homem dificilmente
ousará repetir de forma não natural.
PS. Laura é
real. Ela é filha de um pai organizado e perspicaz. Ela nasceu na garagem. O
fato foi divulgado pela televisão.