|
"O lavrador perspicaz conhece
o caminho do arado."
|
A
autonomia humana é inversamente proporcional às dúvidas concebidas. Quem acha
que sabe muito não tem a liberdade de ser autônomo. O debate coletivo sobre
temas políticos, religiosos e esportivos tendem a despertar sentimentos que
habitualmente estão imersos no insondável de expressiva parcela de mentes. É
conveniente não ultrapassar a fronteira. Se há alguma probabilidade de
confusão, ela ocorrerá!
Permitam-me
mencionar que saí de casa aos 7 anos de idade. Meu pai, um lavrador semianalfabeto
teve a coragem para me botar em uma pensão para estudar na metrópole de
Rochedo, com seus 1,2 mil habitantes; de tal sorte que meu contato com a
família ocorria a cada dois ou três meses. Depois de 2 anos, o velho desfez-se
do pouco que tinha, renunciou ao que sabia e gostava de fazer —, e se mudou para a
cidade que me acolheu, para que meus quatro irmãos também pudessem estudar. Daí,
ele evoluiu um pouco. Tornou-se sucessiva ou concomitantemente, tabelião do
registro civil, comerciante, juiz de paz e presidente do então Partido Social
Democrático, o antigo PSD que rivalizava no País com a então União Democrática
Nacional, a antiga UDN.
Naquela
época, meados da década de 1950, o velho tomou contato com a política e com os
políticos — uma vez que era baiano da roça conversador, mas modesto; ousado,
mas prudente e oportunista; iletrado, mas conhecedor das sendas e atalhos trilhados.
Ele travou conhecimento com duas figuras exponenciais: Filinto Müller e
Juscelino Kubitcheck. O primeiro chegou à condição de senador e líder de
governo; a despeito, para alguns opositores, de ter sido Chefe de Polícia de
Getúlio Vargas. O segundo dispensa comentários; com ele, acho que meu pai teve apenas
dois contatos — um deles na convenção regional do PSD em Cuiabá (o coroa
guardava com muito cuidado a foto tirada ao lado do então candidato à Presidência).
Mais tarde, aí pelos meus 13 a 14 anos, fiz uma crítica ao JK. O velho me deu um
chega pra lá, que eu jamais esqueci. Meu pai me asseverou que a atitude
enérgica não era porque ele admirava aqueles personagens, mas resultava da
necessidade que eu tinha de usufruir a liberdade, sem jamais macular a verdade,
ambas essenciais à democracia, que segundo ele, era o destino do ser humano (disse aproximadamente isso, com outras palavras).
Pensando na atualidade, não resta dúvida de que ele admirava, respeitava e se
orgulhava daquelas pessoas.
Porém,
para ele, a política foi passaporte para a educação da prole, mas deixou marcas
desalentadoras e de desencanto.
Ele
iniciou a venda de gasolina em Rochedo. Não com um posto, mas com uma simples
bomba de gasolina que depois recebeu ampliação de meios. Pois bem, levaram para
ele a proposta de nomeá-lo encarregado da ampliação e manutenção do trecho de
rodovia entre Campo Grande, Rochedo e Rio Negro, que ficava a quase 200
quilômetros da primeira — o Estado foi dividido décadas mais tarde e Campo
Grande se tornou a capital. Tratava-se de obras públicas executadas por
administração direta pelo Departamento Estadual de Estradas. Mas havia uma
condição para a investidura: meu pai receberia combustível do governo do
Estado; aplicaria um percentual nos trabalhos que seriam definidos ao longo do
trecho rodoviário; e revenderia a outra parte, entregando os rendimentos para o
político que apoiava a região, era candidato à reeleição e arquitetou o esquema.
Uma
outra razão estava conectada à primeira. Como presidente do PSD, o velho teria
que orientar um processo de fraude — durante o período que medeia o fim da
votação e o transporte das urnas, no dia seguinte, para Campo Grande — à noite
as cédulas seriam trocadas, com votos que contribuíssem para a (re)eleição daqueles
que faziam parte do grupo de anjos salvadores.
Evidentemente,
cioso do sentimento de que deveria educar os filhos através do exemplo, ele
recusou as propostas e abandonou a militância política. Sem saber e querer, ele
praticou uma das máximas de Stephen Hawking: “Não importa quanto a vida possa
ser ruim, sempre existe algo que você pode fazer, e triunfar. Enquanto há vida,
há esperança."
Agora,
convém dar um salto de volta ao passado. No ano 64 a. C., o romano Marcus Tulius
Cicero concorreu ao cargo de Cônsul, o mais alto da República. Ele tinha 42
anos, era orador brilhante e muito bem sucedido, mas não pertencia à nobreza. Qualquer
cidadão masculino podia concorrer, mas a condição nobiliárquica, o poder
econômico e as indicações políticas e sociais eram fundamentais para o sucesso
em seu intento. Não raro, ocorria corrupção e violência nas eleições romanas. O
irmão mais novo de Cícero, o militar Quintus Tullius Cícero escreveu-lhe uma
carta que foi chamada de Commentariolum Petitionis, que era
uma espécie de manual de procedimentos para chegar ao objetivo acalentado. Um
extrato desse documento foi traduzido por Philip Freeman e publicado nos Estados Unidos com o nome de "Little
Handbook on Electioneering". Freeman fora observador e assessor de
candidato à presidência americana na época das eleições dos presidentes Bush,
Clinton e Obama.
Em
realidade, Quintus orientava seu irmão Marcus (em geral, muito referido nas
fontes atuais apenas como Cícero) no que diz respeito aos processos, técnicas, procedimentos,
rotinas e formas de agir para ganhar a eleição. Pode-se — à guisa de síntese, e
com a superficialidade ora requerida — afirmar que a orientação deveria estar
focalizada não apenas nas ações republicanas, mas também naquelas não
republicanas, ambas amparadas em favores, expectativas e interações pessoais.
Então, se preciso fosse, era conveniente explorar a boa fé, as necessidades e
as expectativas das pessoas, ludibriando-as se necessário. Era conveniente
manter os amigos nas proximidades, mas era fundamental manter os inimigos mais
próximos ainda.
Esse
texto foi, na década passada, arrancado da poeira do tempo pelo escritor
Freeman para mostrar que os malfeitos dos políticos americanos não eram
novidade, pois a prática remontava à Roma antiga. Em realidade, esse escritor
tratava de enfatizar as orientações contidas no texto de Quintus para combater os
procedimentos dos políticos americanos — ou para aperfeiçoá-los a seu modo. A
autenticidade desse documento é contestada por alguns scholars. Entretanto,
mesmo se falso, os ensinamentos que ele contém são aplicáveis a qualquer
período da História e a qualquer país, onde existe a figura do político.
Assim,
na civilização romana antiga e na moderna, em Roma (lá mesmo, pois!) em
Rochedo, em Nova Iorque, em Teresina e onde quer que se queira, os políticos se
parecem, ultrapassam as fronteiras do razoável; na véspera da eleição, parecem
tudo o que eleitor quer; trapaceiam de forma despudorada; agridem a ética e os
bons costumes.
Enfim,
o documento romano mostra que a unificação que Einstein queria na Física ainda
não foi conseguida, mas foi obtida na política, a partir da proposta de Quintus
para o irmão — que, depois Machiavel
sistematizou. A comprovação está em testemunhos inquestionáveis:
– Cícero (que foi eleito em Roma com
maioria absoluta);
– os americanos Clinton (o fumador do charuto), Bush (aquele que teve menos votos que o adversário, e teve a eleição
a eleição contestada no colégio eleitoral, que é realmente quem decide) e Trump
(o que prometeu coisas impossíveis);
– os brasileiros que adotaram a reeleição presidencial (não se sabe a que custo);
– os pais e a mãe do Mensalão e do
Petrolão; e finalmente,
– qualquer dirigente político brasileiro,
cuja capitania — por exemplo, o Piauí e Alagoas — tem o IDH no fundo do poço e,
em particular, a classificação em Educação entre os piores dentre os países melhor
organizados do mundo (membros e parceiros-chave da OCDE, num total de cerca de
70 países).
Dito
isso, dou por bem dito, afirmado e irrenunciável. Mas por que? Quero inferir
que compreendo a reação de meu falecido pai — até hoje, respeitado pelos cinco
filhos, como alguém que viu e enxergou longe e, malgrado as imperfeições da
condição humana, trilhava sendas que eram pavimentadas pela decência e a
pela ética.
Como
Dostoievski proclamou: “Somos responsáveis por tudo e por todos!” Estamos no
momento de lutar pela alternância de poder no Brasil. O combate é incerto e
desproporcional. A soma da comunicação (expressa pela mídia e por artistas),
dos valores básicos (sistematizados por intelectuais) e da gestão (sob a
responsabilidade dos políticos) — claro, uma parcela minoritária, mas maioritariamente
atuante — colocam o objetivo no limiar da beleza do impossível.
Mas a esperança não a
perdemos jamais! Mudar é o primeiro passo! Transformar é imperioso! E a missão é irrenunciável!