quarta-feira, 17 de julho de 2019

Memória – Tragédia em Ponta Porã


Após o término da AMAN, quatro aspirantes de Material Bélico (Dutra, Ailto, Marques e eu próprio) foram classificados na 4a. Companhia Média de Manutenção [*] (Campo Grande-MS). A Companhia dava apoio logístico para as organizações militares localizadas na área de atuação da 9a. Região Militar, aí incluídas a 4a. Divisão de Cavalaria (Campo Grande-MS) e a 2a. Brigada Mista (Corumbá-MS). Em nossa nova Unidade, havia viagens aéreas com certa frequência e, por razões diversas, meus três amigos não participavam dessas missões — até porque, na maioria das vezes, eu era voluntário.
Um certo dia, o Capitão Coelho, comandante da Companhia, chegou um pouco mais cedo para o expediente e me disse que no dia anterior, domingo, o comandante da 4a. Divisão de Cavalaria, General de Brigada Ângelo Irulegui da Cunha, o convocara e determinara que escalasse uma equipe experiente (um oficial e dois sargentos) para apoiá-lo nas inspeções das Organizações Militares subordinadas, em viaturas e armamentos, por ocasião da visita que ele faria ao Sul do Estado, acompanhando o comandante da 9a. Região Militar, General de Divisão Alberto Carlos de Mendonça Lima, que acabara de assumir o comando regional. O Capitão Coelho perguntou se eu desejava participar da missão. Como fiquei em silêncio, ele lembrou que o trajeto daria para eu completar 20 horas de voo, o que me daria um adicional nos vencimentos dos doze meses do ano seguinte. Eu respondi que não interessava o ganho em tela; importava mais a necessidade do serviço, uma vez que eu estava acumulando as funções de subcomandante fiscal administrativo da companhia.
Ele falou para irmos ao Pelotão de Manutenção para consultar o Tenente Camargo — paraquedista e mecânico experiente, operoso e com disposição incomum — se ele poderia ir. Dirigimo-nos para o Pelotão de Manutenção, onde o Camargo era adjunto. Ao ser consultado, ele não hesitou e disse sim com entusiasmo. Como eu sabia que ele tinha vários problemas de saúde na família (envolvendo a esposa e dois dos sete filhos), chamei-o de lado e indaguei-lhe como estava o pessoal em casa. Ele assegurou que uma filha iria ao hospital para exames, pois em face de um severo problema, ela tinha que extrair vários dentes da arcada superior; mas que isso não era problema, pois ele chamaria a sogra, que morava em Porto Epitácio-SP, para acompanhar o processo. Voltei-me para o Capitão Coelho e asseverei que o Camargo não deveria ir; portanto ele poderia me indicar para a missão.
Nesse instante, o Tenente Flávio, diligente comandante do Pelotão de Manutenção, pediu a palavra e afirmou que, numa rara exceção, por ser oficial R2, ele seria transferido para o Rio de Janeiro. E como ele não conhecia o Sul do estado, solicitou que eu abrisse mão da missão em favor dele. Dirigindo-me ao Capitão Coelho, disse que concordava com o pedido do Flávio e que ele poderia receber o encargo. O Flávio ressaltou que gostaria de indicar os sargentos Hércules e Cruz [**], considerados os mais qualificados e comprometidos mecânicos de viatura e armamento, respectivamente. E assim foi feito, Flávio, Hércules e Cruz foram designados.
No dia da viagem, 17/Set/1974, a aeronave Búfalo pilotada pelo Coronel Aviador José Hélio Macedo, comandante da Base Aérea de Campo Grande (transportando o General Mendonça Lima, comandante da 9a. Região Militar, o General Irulegui, comandante 4a. Divisão de Cavalaria e grande parte dos respectivos Estados-Maiores, num total de 19 militares) partiu de Campo Grande para Três Lagoas (1º/4º Regimento de Cavalaria Motorizada); depois seguiu para Aquidauana (9º. Batalhão de Engenharia de Combate), onde pernoitou; e, no dia 18/Set/1974, decolou para Amambai (17º. Regimento de Cavalaria). Lá chegando, o tempo estava completamente encoberto; então ele seguiu para o destino alternativo, que era Ponta Porã (11º. Regimento de Cavalaria). Nessa cidade, o tempo estava começando a fechar e o sargento da Aeronáutica baseado em terra recomendou que o avião seguisse para a alternativa.
O Coronel Macedo decidiu tentar achar uma abertura na névoa que encobria a localidade, pousar e, assim, cumprir a missão. Na tentativa que se seguiu, o avião desceu em demasia e colidiu com um poste metálico — há a versão de que a colisão foi com um caixa d’água suspensa — e espatifou-se no solo causando a morte de todos os militares, à exceção do sargento mecânico da aeronave, que foi lançado pela janela que fica quase sobre a cabeça dos pilotos. Ele se quebrou todo, mas sobreviveu à custa de um longo período de recuperação.
Ao chegar a notícia do acidente, levei a informação ao Capitão Coelho. Ele levou um choque, permaneceu mudo durante um bom tempo e, depois, perguntou o que faríamos. Disse-lhe que deveríamos reunir a Companhia, transmitir o infausto ocorrido e planejar as medidas para o sepultamento dos companheiros que perderam a vida. Recebi a aprovação e determinei o toque de reunir. No auditório, o Capitão Coelho começou a falar, mas sua voz completamente embargada me levou a solicitar a palavra. Com uma presumida e aparente calma, transmiti o infausto ocorrido e determinei a preparação das medidas para a participação do efetivo total da companhia — previsão de chegada dos corpos, eventos subsequentes, horários prováveis e demais aspectos relevantes. Após a liberação, assisti ainda perplexo a saída dos companheiros em silêncio, só quebrado pelo arrasto cuidadoso dos calçados sobre o piso da dependência.
Tomamos conhecimento de que a maioria dos falecidos era de outros estados. Então, haveria transporte aéreo dos corpos, por conta da 9ª Região Militar e Base Aérea de Campo Grande, para Recife, Rio de Janeiro e Porto Alegre. O Flávio era oriundo do Rio de Janeiro e seguiria para sua cidade natal. Escalamos o Tenente Jarbas para acompanhá-lo, participar da entrega do corpo para a família e representar os integrante da 4ª Companhia Média de Manutenção no enterro. Os campo-grandenses — cerca de meia dúzia, aí incluídos os sargentos Hércules e Cruz  —  seriam sepultados no aprazível cemitério Parque das Primaveras — inaugurado um ano antes —, em face de doação dos jazigos pela prefeitura municipal da cidade.
Pessoalmente, fiz contato com as famílias dos nossos dois sargentos. Diante da oferta de apoio, a esposa do Sargento Cruz afirmou que seu esposo gostava do que fazia, vibrava com a profissão e por isso, gostaria que ele tivesse tudo o que tinha direito, o que incluía as honras militares na hora do sepultamento. A esposa do sargento Hércules expressou enorme revolta, culpou o Exército por sua morte e recusou de forma inapelável as honras militares. A decisão do Capitão Coelho foi planejar o sepultamento de ambos de acordo com as opiniões das esposas. O primeiro seria sepultado no cemitério Parque das Primaveras, no âmbito do evento coletivo sob as ordens da 9ª Região Militar; e o outro seria sepultado duas horas antes no cemitério Santo Amaro, onde a família era detentora de jazigo. No caso do sargento Hércules, foi asseverado à esposa que ela não poderia impedir a presença de integrantes da 4a. Companhia Média de Manutenção.
Os dezenove corpos chegaram em Campo Grande no dia seguinte ao acidente e foram levados para o Círculo Militar, localizado no bairro Amambaí, onde foram velados até a hora de seguir para a Base Aérea, de onde partiriam de avião para as localidades de origem; e para os cemitérios locais, no caso dos campo-grandenses.
Ao chegarmos no aeroporto, a primeira constatação foi que o Tenente Jarbas, designado para acompanhar o Tenente Flávio, não compareceu — depois descobriu-se que ele teria ficado amedrontado por ter que seguir com vários mortos na viagem aérea. Nesse momento, ofereci-me como voluntário para acompanhar o Flávio. Porém, houve um quase contratempo. A esposa do Sargento Hércules procurou-me desesperada e aos prantos, arguindo que fora tomada uma decisão, pela 9ª Região Militar, contrária aos desejos da família: seu marido seria sepultado no cemitério Jardim das Primaveras, em evento coletivo e não no cemitério Santo Amaro, conforme pactuado. Imediatamente, dirigi-me ao General de Brigada Lauro Rocca Dieguez [***], comandante da 2ª Brigada Mista — que, em face da morte dos dois generais, comandantes em Campo Grande, assumira o comando da 9ª Região Militar — e expliquei-lhe o planejamento de sepultamento dos dois sargentos da 4a. Companhia Média de Manutenção. Ele ressaltou que a decisão de comando estava tomada e seria cumprida. Como oficial jovem, e ainda não paraquedista audaz, ponderei com firmeza até excessiva, enfatizando que o regulamento beneficiava o pleito da família e que a decisão, salvo juízo controverso, estava errada. O seguinte diálogo se sucedeu:
  Tenente, quantos anos de serviço você tem?
  8 anos de serviço!
  Pois, eu tenho 34 anos de serviço, sendo um ano em situação de combate. Então, você vai fazer o que vocês planejaram, mas me comunique os horários precisos. Eu comparecerei ao enterro do seu sargento. E se alguma coisa der errado, você será preso!
  Sim senhor! Cumprirei a missão e não serei preso! Permissão para ir embora!
  Para ir embora não! Permissão concedida para cumprir a missão e ser preso se for o caso! Essa decisão é minha!
  Sim senhor!
Diante do ocorrido, o acompanhamento do Tenente Flávio ficou comprometido e esquecido. Era preciso pensar e agir. O enterro do sargento Hércules seria daí a quatro horas mais ou menos, então ele seria deslocado para o cemitério Santo Amaro, onde continuaria sendo velado por algum tempo; e o do Sargento Jesus Cruz  seria daí a seis horas, no evento coletivo do cemitério Parque das Primaveras.
Após passar pela 4a. Companhia Média de Manutenção, para ultimar os preparativos e verificar se as determinações do Capitão Coelho estavam sendo cumpridas, dirigi-me para o cemitério Santo Amaro. Lá chegando, encontrei um quadro dantesco: duas senhoras, a esposa e outra não identificada, estavam aos prantos, gritando e se pegando diante do morto; cada uma delas querendo a primazia de quem não poderia mais fazer qualquer opção. E eu que afirmei que não seria preso, chamei o Subtenente Castaño e disse:
  Castaño! Use toda experiência, equilíbrio e sabedoria de avô jovem, com que você recebeu na Fiscalização Administrativa um aspirante que se achava dono do mundo, mas que provavelmente precisaria aprender a ser dono do próprio nariz! Retire essa intrusa daqui e leve-a para bem longe! Evapore-a!
Passados dez minutos, já a meia hora do sepultamento, chegou o General Dieguez. De imediato, procurou-me, indagando se estava tudo bem. Respondi-lhe que, sem sombra de dúvida, as ordens dele jamais deixariam de ser cumpridas.

Enfim, depois do sepultamento coletivo, no cemitério Parque das Primaveras, encerrou-se um episódio lamentável e tormentoso. Só não encerraram as lembranças que, não raro, levam a profundas reflexões sobre o sentido da existência; sobre o que é realmente relevante; sobre o que deve prevalecer na trajetória humana. Sempre que rememoro esse trágico evento, penso na conhecida e recorrente asserção de que “entre o céu e a terra há tantos mistérios que a nossa vã filosofia mal imagina”. Ademais, relato com alívio, pelas oportunidades que recusei para colocar-me no epicentro da tragédia; porém com dor, solidária com quem perdeu entes valorosos e queridos. Com emoção, homenageio os bravos guerreiros que sucumbiram no cumprimento do dever. Eles são o eterno exemplo para seus sucessores. Eles são a inspiração para quem a disposição para servir é a glória eterna!

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Destroços da aeronave Búfalo C-115, após a queda em solo pontaporanense.
Foto: Roberto Higa.


Transporte dos mortos, do Círculo Militar de Oficiais de Campo Grande para a Base Aérea.
Foto: provalmente, de Roberto Higa.

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[*] Pensando nos leitores da família (a maioria civis), não usei as habituais abreviaturas de OM e de postos militares de nossa cultura e tradição. Elas são apresentadas aqui:
4ª Cia Me Mnt – 4ª Companhia Média de Manutenção.
9ª RM – 9ª Região Militar;
4ª DC – 4ª Divisão de Cavalaria;
2ª Bda Ms – 2ª Brigada Mista;
Gen Div – General de Divisão.
Gen Bda – General de Brigada;
Cel Av – Coronel aviador;
Cap – Capitão;
Ten – Tenente;
St – Subtenente; e
Sgt – Sargento.
 [**] Sargento Jesus Cruz. Por uma lamentável falha de memória, passados 45 anos, o nome de um dos heróis dessa tragédia foi esquecido. O nome Jesus foi escolhido para, da forma mais respeitosa possível, denominá-lo. O nome será alterado quando a memória for recuperada. 
  Revisão (26/Set/2019): graças ao amigo Ângelo, que me enviou farta referência bibliográfica, recuperei o nome esquecido e fiz a devida correção; não é sargento Jesus e sim sargento Cruz. A propósito, aproveito para listar os nomes de todos os valentes companheiros que pereceram no acidente, conforme divulgado no artigo "Generais morrem em queda de avião" (Folha de São Paulo de 19/Set/1974):
 --> EB
      Gen Div Alberto Carlos de Mendonça Lima;
      Gen Bda Ângelo Irulegui da Cunha;
      Cel Cav Athos Prates da Silveira;
      Cel Vet Walter Gustavo Oscheneek Ramos;
      Cel Int Ilzio Corsini Cabral;
      Maj Art José Pinto;
      Maj Inf Juarez Lucas de Jesus;
      Cap Inf Francisco Holanda de Moura;
      Cap Cav Ayrton Pereira Rebouças;
      Cap Art Mário Pio Pereira;
      2º Ten R2 Flávio José de Carvalho (4ª Cia Me Mnt);
      Sgt Severino Francisco da Cruz (4ª Cia Me Mnt); e
      Sgt Hércules Santos de Campos (4ª Cia Me Mnt).

 --> FAB
      Cel Av José Hélio Macedo;
      1º Ten Av Samuel Wagner Marques de Almeida;
      Sgt Jonas Sérgio de Oliveira;
      Taifeiro Ari Barros; e
      Taifeiro Nilo Pedro Francisco Lopes.

[Um único militar (um sargento da FAB) se salvou. Deixo de listar o nome de um militar falecido porque, no artigo da Folha de São Paulo, há dúvida sobre quem pereceu e quem se salvou].

[***] É curioso esclarecer que o General de Brigada Lauro Rocca Dieguez, comandou a 2ª Brigada Mista de 3/Jun/1974 a 24/Fev/1976. Ele foi antecedido pelo General de Brigada Oswaldo Ignácio Domingues, que comandou essa Brigada de 15/Mai/1973 a 7/Mai/1974. 
  O General Domingues participou da competição de 100 m rasos, na Olimpíada de Berlim, em 1936. Ele quase foi para a final com Jesse Owen, o ganhador da prova, para tristeza e decepção de Adolf Hitler.
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