sábado, 15 de maio de 2021

Piano e arte

"O lavrador perspicaz conhece o caminho do arado".
Homenagem a Oscar Barboza Souto, antigo lavrador, garimpeiro e comerciante.
In Memoriam.


Há cerca de 10 anos atrás, cogitei de comprar um piano para estimular nossas queridas filhas a se interessarem e, se fosse o caso, a iniciarem o aprendizado musical.

Contatei algumas pessoas que estavam ofertando pianos usados. O caso mais promissor era um piano Weibel, com aproximadamente 50 anos (a metade desse tempo compreende uso, e a outra metade, permanência como objeto de decoração). Curiosamente, um pai o comprara para fomentar o aprendizado de música por suas três filhas. Elas começaram as aulas na adolescência e abandonaram a empreitada algum tempo depois de ingressarem na vida adulta — o gosto por música não era exatamente uma opção e vocação; quer dizer, gostavam mais não muito o suficiente para mergulhar na satisfação de inebriar-se e inebriar a outrem. O piano ficou sob a responsabilidade da filha mais nova, que recebeu a recomendação do pai para não se desfazer do valioso instrumento. Ela carregou esse ônus enquanto o genitor estava vivo. Logo após sua partida, ela anunciou a venda.

Então, adquiri o piano que, a despeito da longevidade, estava em bom estado de conservação — considerei-o satisfatório pela razoável sonoridade, pela estética, pelo brilho e pela ausência de qualquer mossa na madeira; e porque se destinava a iniciantes na arte musical.

Passados cinco anos, chegou a hora da renovação. Resulta daí que substituí o velho Weibel por um piano marca Ritmuller. O som magnífico, associado à condição de objeto “novo em folha”, tornam sua posse agradável e estimulante. Nesse contexto, a vida segue nem sempre da forma desejada e aspirada.

Ao longo de 2020 e 2021, surgiram duas mossas na parte frontal da madeira do piano. Previamente, há a considerar que à razão de duas mossas por ano, o piano chegaria a 20 mossas em 10 anos — ou seja, completaria uma década em estado lamentável. É essencial indagar o que teria causado esses primeiros danos. Levantei as seguintes alternativas:

– eu próprio ter deixado cair algum objeto sobre a madeira;

– em suas habituais brincadeiras, as meninas terem batido com algum objeto e causado as mossas;

– por ocasião da arrumação de móveis, Isabel ter batido com alguma coisa na superfície atingida;

– nas habituais tarefas de limpeza, a funcionária ter deixado o cabo de vassoura, do rodo ou do aspirador bater na madeira do piano; e

– ação de algum fantasma.

Começo a análise de forma aleatória. Como as meninas abandonaram a prática musical — e, por estarem na alvorada da vida adulta, suas brincadeiras evoluíram de patamar —, é pouco provável que elas tenham causado os pequenos estragos.

Com a contratação, no início de 2020, de nova funcionária, Isabel tem atuado muito pouco nas lides de arrumação e limpeza, então, é pouco provável que ela tenha causado as pequenas agressões ao piano.

No atinente a mim próprio, mesmo à luz das consequências de estar submetido às imposições de sete décadas de condição humana — o que poderia ser inevitável algum deslize em atitudes e procedimentos —, não tenho qualquer lembrança de ação que poderia causar as mossas; até porque sendo duas, haveria pequena probabilidade da omissão de lembrança.

A eventual obra de fantasma está afastada pois eles só entram em nossa Casa em Cima do Mundo quando estamos fora, em viagem. É convincente aduzir que nesses últimos catorze meses permanecemos na situação de distanciamento requerida pela pandemia do coronavírus e não nos afastamos de nossa casa.

Destarte — sem querer, a priori, atribuir culpa — cresce a probabilidade de que o dano tenha sido causado pela diligente funcionária Aline. Afinal, uma a duas vezes por semana, ela utiliza vassoura, rodo e aspirador (com cabo longo e rígido) para a limpeza do ambiente em que se encontra o piano.

Vislumbre, cogitação e análise levam-me a fazer recomendações expressas a todas as personagens envolvidas no manuseio e manutenção, no sentido de que — ao olhar, lidar, limpar e tocar o piano —, tenham cuidado para concretizar a meta de transmitir para a posteridade um instrumento devidamente conservado, com o som e a apresentação dignos daqueles que gostam, admiram e praticam a arte musical — e cuja sensibilidade é estimulada pela estética e pela sonoridade dos mágicos toques do mais rico aparato musical concebido pelo ser humano.

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