A concepção
e implementação ou a transformação de qualquer sistema de ciência &
tecnologia pode, e talvez deve, levar em conta condicionantes históricas,
científico-tecnológicas e estratégicas. Neste texto, sem preocupação com a
estruturação adequada e com embasamento conceitual, tento abordar essas
condicionantes.
A autonomia
tecnológica e estratégica é essencial para qualquer força armada e para o país
que a abriga. Como origem ou corolário dessa autonomia, na história da
Humanidade, não há vitórias militares relevantes com armamentos concebidos,
projetados e construídos no exterior. Um brilhante aluno da ECEME se contrapôs a
essa assertiva citando-me as vitórias norte-vietnamitas e israelenses.
Asseverei-lhe que não foram as armas que deram a vitória aos vietcongues, mas a
vontade daquele povo, estimulada por um militar estadista, o General Giap.
Afirmei também que os israelenses usaram carros de combate e aeronaves
compradas no mercado externo, mas instrumentalizadas com a aviônica e demais
controladores e sensores — isto é, toda a inteligência dos sistemas bélicos —
concebidos e produzidos pelos cérebros locais. Isso sem esquecer o que afirmara
Ben Gurion, nos primórdios do Estado judeu, em tradução livre e descompromissada
com a precisão: “Somos poucos, em um pequeno território, mas temos os melhores
cérebros!”. E incontinenti, determinou a escolha de alguns dos mais talentosos
jovens da área de física e engenharia para fazer doutorado em consagradas
universidades europeias e americanas, voltar a Israel e estabelecer as
fundações do que se conhece hoje como uma excepcional condição tecnológica e
estratégica daquele Estado.
Como
ilustração da autonomia nas duas vertentes fundamentais, vale a pena lembrar outros
exemplos díspares, mas emblemáticos, envolvendo os Estados Unidos, Rússia,
França, China, África do Sul, Paquistão,
Coréia do Norte e Irã. Os exemplos aqui citados estão apoiados na pesquisa e
autonomia nuclear, permeada de dificuldades científico-tecnológicas, políticas e
econômicas, a tal ponto que o Brasil renunciou ao desenvolvimento de armamento
atômico. Entretanto, o conhecimento da evolução das conquistas nucleares pode
ser considerado exemplar e serve de referência para outras áreas com menos
sensibilidade e barreiras internacionais.
Os Estados
Unidos produziram e testaram a primeira bomba atômica em Los Alamos, em 1945,
no âmbito do Projeto Manhatan, reunindo alguns dos maiores cientistas de todos
os tempos, oriundos de vários países — dentre os 24 cientistas mais relevantes,
11 eram americanos e 13 eram europeus. Entre eles podem ser mencionados: o
italiano Enrico Fermi; os húngaros Leo Szilard, John von Neumann e Edward
Teller; o dinamarquês Niels Bohr (com pequena mas importante participação, já
que pode ser considerado, depois de Einstein, o mais notável cientista do
século XX); todos reunidos sob a inexcedível liderança do americano Robert
Openheimer (que mais tarde, fora muito contestado, entre outras coisas, por ser
ligado a socialistas e comunistas). Ademais, o êxito americano resultou da
contribuição de cerca de dezenas de centros de pesquisa tecnológica ou
universidades.
A União Soviética construiu e testou sua
primeira bomba atômica em 1949, após replicar, na localidade de Mayak, próximo
dos montes Urais, a infraestrutura americana do Projeto Manhatan (com
cerca de 40 000 profissionais soviéticos, do servente de pedreiro ao
engenheiro, envolvidos somente na construção civil); e tendo obtido o projeto
completo da primeira bomba atômica americana, que lhes foi repassado por Klaus
Fuchs, cientista britânico, nascido na Alemanha, que trabalhou em Los Alamos e
atuou como espião soviético. O primeiro artefato nuclear soviético
foi chamado RDS-1 (Reaktivnyi
Dvigatel Stalina-1, ou Motor Foguete de Stalin-1), pesquisado e construído
no Instituto para Pesquisa Científica para Física Experimental, conhecido como
Arzamas-16, localizado na cidade secreta de Sarov, na região de Mayak, sob a
liderança do cientista Yuliy Borisovich Khariton; e sob a supervisão de
Lavrenti Beria, cuja determinação era fuzilar o cientista se o teste não
funcionasse. Khariton fez seus estudos acadêmicos na União Soviética, fez
pós-graduação em Cambridge e ao retornar a Moscou, em 1931, com a idade de
vinte e sete anos, recebeu a incumbência de organizar o Laboratório de
Explosivos no âmbito do Instituto de Física e Química. Ele acompanhou com
perspicácia a descoberta, em 1939, da fissão nuclear pelos alemães Hahn,
Strassman e Lisa Meitner; e os experimentos do casal Joliot-Curie, franceses
que receberam prêmio Nobel por pesquisas na área nuclear.
Passando
para o exemplo francês, é oportuno lembrar que após o término da Segunda Guerra
Mundial, De Gaulle cobrou de Truman o apoio para o desenvolvimento
científico-tecnológico e militar francês, em contrapartida acertada com o
falecido presidente Roosevelt pelo apoio francês, em cientistas nucleares, que
saíram da França por ocasião da invasão nazista. Nessa época, De Gaulle queria
apoio para submarino e para a área nuclear. Truman fez-se de desentendido,
asseverando que não havia qualquer acordo formal nesse sentido. De Gaulle tomou
a decisão de implementar programas autônomos. Daí, resultaram as indústrias de
carros de combate, de aeronaves bélicas, de submarinos e de armas nucleares,
como hoje as conhecemos — ressalte-se que os franceses explodiram a bomba de
fissão nuclear, chamada Gerboise Bleue,
em Reggane/Argélia, em 1960 e a bomba de fusão nuclear, no atol de Fangataufa, no
Pacífico, em 1968). É conveniente não esquecer que os americanos negaram apoio
nuclear também para Israel. Por razões comuns, e também distintas, ocorreu a
cooperação nuclear franco-israelense, a tal ponto que, por ocasião do teste nuclear
com a Gerboise Bleue, afirmou-se que
com uma única explosão, duas nações tornaram-se nucleares: França e Israel.
Fontes não oficiais declaram que, na atualidade, Israel dispõe de arsenal
atômico com mais de 100 bombas.
Mao Tse Tung
triunfou na China em 1949 e foi a Moscou pedir apoio a Stalin. Tomou chá de
cadeira durante quase uma semana. Foi recebido e ganhou a promessa de
assistência militar, educacional e científico-tecnológica. Inicialmente, essa
promessa foi cumprida e um extenso programa de cooperação foi estabelecido —
até mesmo uma bomba atômica foi prevista no apoio para que os chineses pudessem
ter dados para seu próprio projeto nuclear. No final da década de 1950,
Kruschev encerrou o programa de cooperação, nos termos em que fora implementado,
naturalmente com ênfase na negação do apoio nuclear. E o que fizeram os
chineses? Sorriram! Na área científico-tecnológica para fins militares, eles
montaram um programa espelho secreto, no qual tudo o que era feito em parceria
com os soviéticos, era reproduzido no programa paralelo. Disso resultou, por
exemplo, a primeira bomba atômica chinesa, que foi denominada “596” — número
que se tornou emblema da honra e vergonha chinesas, uma vez que a negativa do
líder soviético fora feita em junho de 1959 (59/6). A China construiu seu primeiro artefato atômico
por essas razões, mas também porque obteve o projeto do mesmo espião que o
entregou para a União Soviética (depois de ser preso na Inglaterra durante mais
de dez anos pelos malfeitos como espião, ele foi morar na antiga Alemanha
Oriental e ao ser contatado pelos chineses entregou-lhes o projeto); e também
com alguma colaboração francesa, já que o líder do projeto chinês, cientista
Qian Sanqiang, trabalhou 11 anos na França com os renomados cientistas Frédéric
e Irène Joliot-Curie (ele, membro do Partido Comunista Francês e demitido da
liderança do projeto nuclear francês em 1950) e, ao retornar à China, recebeu
de Mao Tse Tung a incumbência de manter a ligação com o casal Curie. Foi por
essa época que os chineses lançaram as oito prioridades estratégicas de Ciência
e Tecnologia, cujo objetivo era torná-los uma das potências dominantes 100 anos
depois, ou seja, em 2050 — parece que vai acontecer antes! Sem querer ser
exaustivo, convém lembrar que, das cinco potências que dispõem das bombas A e
H, a China foi a que menos tempo levou para passar da explosão da bomba de
plutônio para a de hidrogênio — a primeira foi testada em 1964 e a termonuclear
em 1967.
No que
concerne à África do Sul, a política do apartheid
ocasionou rigoroso embargo internacional àquele país. Então, os sul-africanos
não hesitaram e desencadearam processos científico-tecnológicos autônomos. O
CSIR (Council for Scientific and Industrial Research) é um exemplo extremamente
revelador. Centraliza a maior parte da pesquisa & desenvolvimento civil e
militar da África do Sul e tem avanços surpreendentes para o inequivocamente
problemático país. Como o maior embargo internacional, direcionado para
qualquer longitude ou latitude, pode estar na área nuclear, vale a pena relatar
que os sul-africanos produziram seis bombas atômicas. Esse fato é pouco
divulgado, mas em 1993, antes de passar o poder para Mandela, o presidente De
Klerk anunciou, em sessão secreta do Parlamento, a interrupção do programa
nuclear e a desmontagem e, supostamente, o reaproveitamento em atividades
industriais ou a destruição do material nuclear. Obviamente, a inequívoca
autonomia sul-africana foi reduzida expressivamente após a ascensão de Mandela,
com a consequente abertura para o exterior e as pressões e influências resultantes
do poder econômico, científico-tecnológico e político internacional.
A Coréia do
Norte e o Irã — este ainda não tem a bomba atômica, mas tem uma ampla
infraestrutura nuclear, com o objetivo inarredável de construí-la — receberam
ajuda da China.
Por
intermédio de A. Q. Khan, o Paquistão obteve tecnologia nuclear europeia de
forma ilícita, quando por vários anos esse cientista trabalhou em projetos
nucleares europeus; contou com engenheiros nucleares da África do Sul,
disponíveis após a interrupção do projeto nuclear sul-africano; e também
recebeu ajuda da China.
Às questões
de desenvolvimento nuclear, ao contexto em que ele historicamente ocorreu nos
diversos países com êxito nesse tipo de empreitada, agregue-se a condição de
beligerante de todos os países que se tornaram detentores de armas nucleares. Fundamental
é refletir que, conquanto as conquistas dependam do exterior, as vitórias
científico-tecnológicas, industriais e estratégicas nesse campo são individuais
de cada nação.
Em face da
recorrente citação de armas nucleares nessas notas, devo ressaltar que não considero
primordial produzir bomba atômica. A Alemanha e o Japão não a produzem.
Entretanto, a autonomia pode ser buscada nas tecnologias correlatas e na
pesquisa & desenvolvimento de vetores de outras áreas, como o fazem de
forma magistral os alemães e os japoneses.
O que é
relevante mencionar quanto à autonomia tecnológica e estratégica no Brasil? Ressalvada
a modéstia de conquistas, os resultados obtidos no âmbito do Plano Básico de
Ciência e Tecnologia do Exército/2005 — um vigoroso (para a época) programa de
pesquisa & desenvolvimento — devem ser considerados exemplares. Pois bem, a
equipe de pesquisadores do Exército, em cooperação com outros centros de
pesquisa e universidades, bem como com a participação do segmento industrial
nacional — nacional e de brasileiros, eu ressalto! —, logrou êxito em
pesquisar, desenvolver e produzir pelo menos 6 sistemas bélicos que jamais
foram obtidos ao Sul do Equador: radar para defesa antiaérea, simulador para
treinamento de piloto de helicóptero, sistema de comando e controle, sistema de
guerra eletrônica, viaturas tubulares sobre rodas com suspensão independente
nas quatro rodas e sistema para emprego automático de metralhadora em viatura
blindada. Convém enfatizar que todos estão em uso ou poderiam estar em uso no
Exército. Essa amostra, pequena é bem verdade, comprova que o desenvolvimento
autônomo é possível.
E um contra
exemplo de nosso País? Tomemos uma referência industrial, alicerçada em evolução
tecnológica: a indústria automobilística brasileira que é uma das seis maiores
do mundo (pode ser a quinta, sétima ou oitava; isso é irrelevante). Entretanto,
somos o único país dentre os 10 maiores produtores de automóvel que não possui
uma empresa automobilística nacional, de propriedade de nacionais e com capital
majoritariamente nacional. Por imperioso, esse segmento industrial pode ser
considerado uma metáfora dos demais segmentos importantes para qualquer país. O
impacto disso sobre a área militar é enorme. A quem recorrer para termos
vetores de deslocamento nacionais? A solução: pagar a pesquisa &
desenvolvimento para empresas estrangeiras que já produzem vetor similar. É nonsense em estado puro.
Por ocasião
da concepção de nossa Estratégia Nacional de Defesa, tive a oportunidade de
examinar as estratégias similares, britânica, francesa, chinesa e australiana.
Na época, fui quase inconveniente, pleiteando que,
do ponto de vista científico-tecnológico, fosse levado às mais altas instâncias
militares a necessidade de intensa e pertinaz participação no
processo. Curiosamente, tive no CTEx uma manhã com o Sr. Mangabeira Unger e
cheguei a ser, ao lado de outros, cogitado para participar de algumas reuniões
para tratar do tema — não foi possível! E eu aduziria que o setor de Ciência
& Tecnologia militar terrestre teve uma participação menor do que poderia! Um
indicador das consequências da END (ou EDN) foi o interesse das empresas estrangeiras
do setor de defesa em atuar no Brasil e até mesmo em adquirir empresas
brasileiras que, a duras penas e com apoio do Exército, pesquisaram e
produziram alguma coisa. Essas multinacionais entenderam o recado algo como: “É
a hora, venham que lhes acolhemos!”. Lamente-se similarmente a associação de
empresas brasileiras do setor de construção civil com multinacionais
estrangeiras do setor de defesa. As empresas brasileiras conseguem até
construir mais no exterior e as estrangeiras mantém a supremacia e impedem a
nossa autonomia. Nesse sentido, há companheiros que pregam com desassombro a
associação como forma de aceleração do crescimento. Eu também posso defender a
ideia, desde que haja uma participação paritária — o que é uma impossibilidade
quando o insumo essencial é o conhecimento, pois prevalece quem o detém.
O que posso
inferir do conteúdo dessas notas e informações? Não tenho a pretensão de transmitir
conhecimento ou convencer sobre isso ou aquilo. Mas é inquestionável asseverar
que no Brasil não há prioridade para o desenvolvimento científico-tecnológico,
como de resto, não há prioridade para o processo educacional. Não há uma
mentalidade de pregação da autonomia tecnológica e estratégica. Tudo que vem do
exterior continua sendo bom. De um simples objeto doméstico a aeronaves e equipamentos
militares, passando pelos serviços culturais como, por exemplo, a música e o
cinema. Fala-se com ar de superioridade quando se tem acesso ao que vem do
exterior. Penso que há uma enorme lacuna a ser preenchida em nosso País. É a
ausência de pensadores e formadores de opinião concernentes aos interesses das
Forças Armadas, alicerçados no campo científico-tecnológico. Então, estes
garranchos com características panfletárias, sem preocupação com a estruturação
e com o embasamento conceitual, podem servir de estímulo para que companheiros
talentosos, com maior conhecimento e qualificação possam tratar apropriadamente
da fundamental questão da autonomia tecnológica e estratégica de nosso País.
__________________________
Este texto foi elaborado com dados colhidos em fontes
bibliográficas e obtidos em visitas a centros de pesquisa
científico-tecnológica da África do Sul, China, Rússia e Reino Unido. Para um
estudo mais cuidadoso e confirmação dos dados vale a pena consultar:
1. The nuclear express, de Thomas C. Reed e Danny B. Stillman,
Zenith Press, 2009;
2. Defend the Realm – The authorized history of MI5, de
Christopher Andrew, Borzoi Book, 2009;
3. The making of the atomic bomb, de Richard Rhodes, Simon
& Schuster, edição revista de 2012;
4. Spying on the bomb, de Jeffrey T. Richelson, W. W. Norton
& Company, 2007; e
5. Robert Oppenheimer – A life inside the center, de Ray Monk,
Dobleday, 2012.
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