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"O lavrador perspicaz conhece o caminho do arado." Homenagem a Oscar Barboza Souto, antigo lavrador, garimpeiro e comerciante. In Memorian. |
O amigo Saint-Clair enviou-me uma interpretação magnífica da música Bolero, de Ravel, regido pelo maestro romeno Sergiu Celebidache. Saint-Clair alertou que Celibidache disputou, no século XX, o título de maior regente do mundo com o austríaco Herbert Von Karajan.
Ao ouvir atentamente essa música, lembrei-me que, na década de 1970, quando servia na Brigada Paraquedista, comprei um disco vinil que, afora extratos de música do Beethoven e do Albinoni, tinha o Bolero de Ravel. Então, nessa época, tomei conhecimento de algumas das melhores músicas já compostas; e meu horizonte de cultura musical evoluiu da apreciada música sertaneja, que predominava na região onde nasci, para um nível inequivocamente diferenciado.
A regência do genial Celibidache é magnífica. A elegância como ele anuncia os instrumentos é algo que mexe com qualquer sensibilidade. Assim, vamos nos inebriando com cada compasso, em que predominam sucessivamente a flauta, o flautim, o clarinete, o oboé, o fagote, o trompete, o sax tenor, o sax soprano, a trompa, o trombone; em seguida os sopros, as cordas, e o conjunto dos sopros e das cordas; e finalmente a orquestra quase inteira (provavelmente, essa sequência está incorreta e incompleta, mas isso não prejudica o relato sobre a consagrada música e sua soberba interpretação).
Possivelmente, Manoel Bandeira diria que a regência de Celibidache é poesia em estado puro, e melhor que a dele. E aí me lembrei que já estive, com Isabel, na planície de Pasárgada, magnificamente cantada por Bandeira no poema “Vou-me Embora para Pasárgada”. Admirei o singelo mausoléu do Ciro, o Grande, fundador da Pérsia, e a épica conclamação para que esse túmulo, construído naquela planície, no século V a. C., jamais fosse destruído. Em um fragmento de história, aprendi que Alexandre, depois de destruir Persépolis (até as ruínas que sobraram são fantásticas!), determinou a seus guerreiros que não tocassem naquele túmulo. Eles deixaram-no intacto, mas recolheram todas as imensas riquezas que abrigava.
Se Ravel vivo estivesse, e assistisse à apresentação sob a batuta de Celibidache, diria:
“Liderou uma apresentação de forma mais esplendorosa do que aquela que extraí de minha imaginação!”.
Por seu turno, o notável Bandeira diria:
“A beleza dessa interpretação me obriga a ir mesmo para Pasárgada!”.
A ficção que o poeta imaginou em seu poema mais célebre precisaria tornar-se realidade. Só assim, Bandeira poderia apreciar algo melhor do que o Bolero regido por Celibidache.
Mas voltando ao Saint-Clair, sua erudição musical, iniciada aos cinco anos com orientação de seu avô, é admirável e proporciona momentos magníficos, como a sugestão dessa versão da obra-prima de Ravel. Resta o agradecimento ao estimado amigo da turma Marechal Mascarenhas de Morais; e aos prestimosos líderes da turma, que agem de forma arguta e pertinaz, e impedem que a distância separe os companheiros de juventude — cuja interação fraterna independe do afastamento de algumas décadas.
Mausoléu do Ciro
É imperioso recordar o texto deixado por Ciro, o Grande, em seu mausoléu, na planície de Pasárgada:
“Oh, cidadão do mundo, seja você quem for, de onde quer que você vier — porque eu sei que você virá —, eu sou Ciro, que fundou o império dos persas. Não tenha aversão por mim e não profane esse mausoléu que abriga meu corpo.” (Segundo Heródoto).
“Alexandre veio e, 23 séculos depois, nós também viemos.”
Aléssio & Isabel, Pasárgada, Irã, 2 de julho de 2000.
Bolero de Ravel
Apresento agora a versão da música do Ravel, sugerida pelo Saint-Clair. Para assistir, queira clicar sobre o título em azul.
Bolero de Ravel - Regência de Sergiu Celibidache
Vou-me Embora pra Pasárgada
Manoel Bandeira
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d’água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcaloide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.