sexta-feira, 19 de março de 2021

Apologia de uma amizade

"O lavrador perspicaz conhece o caminho do arado."
Homenagem a Oscar Barboza Souto, antigo lavrador, garimpeiro e comerciante.
In Memorian.

O amigo Saint-Clair enviou-me uma interpretação magnífica da música Bolero, de Ravel, regido pelo maestro romeno Sergiu Celebidache. Saint-Clair alertou que Celibidache disputou, no século XX, o título de maior regente do mundo com o austríaco Herbert Von Karajan.

Ao ouvir atentamente essa música, lembrei-me que, na década de 1970, quando servia na Brigada Paraquedista, comprei um disco vinil que, afora extratos de música do Beethoven e do Albinoni, tinha o Bolero de Ravel. Então, nessa época, tomei conhecimento de algumas das melhores músicas já compostas; e meu horizonte de cultura musical evoluiu da apreciada música sertaneja, que predominava na região onde nasci, para um nível inequivocamente diferenciado.

A regência do genial Celibidache é magnífica. A elegância como ele anuncia os instrumentos é algo que mexe com qualquer sensibilidade. Assim, vamos nos inebriando com cada compasso, em que predominam sucessivamente a flauta, o flautim, o clarinete, o oboé, o fagote, o trompete, o sax tenor, o sax soprano, a trompa, o trombone; em seguida os sopros, as cordas, e o conjunto dos sopros e das cordas; e finalmente a orquestra quase inteira (provavelmente, essa sequência está incorreta e incompleta, mas isso não prejudica o relato sobre a consagrada música e sua soberba interpretação).

Possivelmente, Manoel Bandeira diria que a regência de Celibidache é poesia em estado puro, e melhor que a dele. E aí me lembrei que já estive, com Isabel, na planície de Pasárgada, magnificamente cantada por Bandeira no poema “Vou-me Embora para Pasárgada”. Admirei o singelo mausoléu do Ciro, o Grande, fundador da Pérsia, e a épica conclamação para que esse túmulo, construído naquela planície, no século V a. C., jamais fosse destruído. Em um fragmento de história, aprendi que Alexandre, depois de destruir Persépolis (até as ruínas que sobraram são fantásticas!), determinou a seus guerreiros que não tocassem naquele túmulo. Eles deixaram-no intacto, mas recolheram todas as imensas riquezas que abrigava. 

Se Ravel vivo estivesse, e assistisse à apresentação sob a batuta de Celibidache, diria: 

“Liderou uma apresentação de forma mais esplendorosa do que aquela que extraí de minha imaginação!”. 

Por seu turno, o notável Bandeira diria: 

“A beleza dessa interpretação me obriga a ir mesmo para Pasárgada!”. 

A ficção que o poeta imaginou em seu poema mais célebre precisaria tornar-se realidade. Só assim, Bandeira poderia apreciar algo melhor do que o Bolero regido por Celibidache.

Mas voltando ao Saint-Clair, sua erudição musical, iniciada aos cinco anos com orientação de seu avô, é admirável e proporciona momentos magníficos, como a sugestão dessa versão da obra-prima de Ravel. Resta o agradecimento ao estimado amigo da turma Marechal Mascarenhas de Morais; e aos prestimosos líderes da turma, que agem de forma arguta e pertinaz, e impedem que a distância separe os companheiros de juventude — cuja interação fraterna independe do afastamento de algumas décadas.

 

 

Mausoléu do Ciro

É imperioso recordar o texto deixado por Ciro, o Grande, em seu mausoléu, na planície de Pasárgada:

 “Oh, cidadão do mundo, seja você quem for, de onde quer que você vier — porque eu sei que você virá —, eu sou Ciro, que fundou o império dos persas. Não tenha aversão por mim e não profane esse mausoléu que abriga meu corpo.” (Segundo Heródoto).

 


“Alexandre veio e, 23 séculos depois, nós também viemos.”

Aléssio & Isabel, Pasárgada, Irã, 2 de julho de 2000.

 

 

Bolero de Ravel

Apresento agora a versão da música do Ravel, sugerida pelo Saint-Clair. Para assistir, queira clicar sobre o título em azul.


Bolero de Ravel - Regência de Sergiu Celibidache


 


Vou-me Embora pra Pasárgada

 Manoel Bandeira

Vou-me embora pra Pasárgada

Lá sou amigo do rei

Lá tenho a mulher que eu quero

Na cama que escolherei

 

Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada

Aqui eu não sou feliz

Lá a existência é uma aventura

De tal modo inconsequente

Que Joana a Louca de Espanha

Rainha e falsa demente

Vem a ser contraparente

Da nora que nunca tive

 

E como farei ginástica

Andarei de bicicleta

Montarei em burro brabo

Subirei no pau-de-sebo

Tomarei banhos de mar!

E quando estiver cansado

Deito na beira do rio

Mando chamar a mãe-d’água

Pra me contar as histórias

Que no tempo de eu menino

Rosa vinha me contar

Vou-me embora pra Pasárgada

 

Em Pasárgada tem tudo

É outra civilização

Tem um processo seguro

De impedir a concepção

Tem telefone automático

Tem alcaloide à vontade

Tem prostitutas bonitas

Para a gente namorar

 

E quando eu estiver mais triste

Mas triste de não ter jeito

Quando de noite me der

Vontade de me matar

— Lá sou amigo do rei —

Terei a mulher que eu quero

Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada.

 

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