sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Sócrates, Zamperini e Hawking

O que há de comum entre o grego Sócrates, o americano Louie Zamperini e o britânico Stephen Hawking — sendo o primeiro separado dos demais por mais de dois milênios?
Sócrates. Ao ler um livro de 900 páginas, repousando na cama, cochilei e o livro caiu em meu queixo. O sono foi-se instantaneamente. Fui à livraria comprar os livros didáticos de minhas filhas e no fechamento do negócio, fui informado de que se completasse a compra com mais algumas dezenas de trocados, garantiria um bônus.  Então, escolhi alguns livros leves, pequenos e de baixo custo — afora exercer o direito à vantagem ofertada, poderia ler deitado e sem risco.
Um dos livros — levíssimo, com volume reduzido e custando R$ 9,00 — era A apologia de Sócrates, de Platão. Foi uma bela aquisição. Deu para conhecer pela própria boca de Sócrates (naturalmente, com formulação do autor, aluno daquele sábio grego, que transmitira para a posteridade a herança do mestre, que nada deixara registrado) o que já lera ou ouvira na forma de citações de outros autores. — a coragem moral de Sócrates, a definição dos fundamentos da ética e um quase delineamento do que hoje é chamado habitualmente de estado democrático de Direito.
O livro versa fundamentalmente sobre o julgamento de Sócrates, ocorrido em 399 a. C., em Atenas, em face da acusação de impiedade e corrupção dos jovens. Ele é organizado em três partes: Êutifron, A apologia de Sócrates,  que nomeia a publicação,  e Críton.
Êutifon é um dos célebres diálogos, típicos da obra de Platão, onde Sócrates questiona o adivinho Êutifron — este também envolvido em processo de julgamento, dado que estava processando o próprio pai por homicídio de um assassino — desqualifica o interlocutor ao mostrar que ele não tinha o conhecimento que apregoava; apresenta evidências de que a busca do conhecimento requer a suposição de ignorância e dúvida, de tal sorte que num processo racional de indagações, surja a luz; e antecipa argumentos lógicos que utilizaria posteriormente em sua defesa.
A apologia de Sócrates traz três discursos do filósofo no bojo de seu julgamento pela acusação que lhe fora perpetrada. No primeiro, ele faz sua própria defesa perante o corpo de 500 jurados. Com a abordagem concernente à piedade — não para pedi-la, mas para conceituá-la — tem a mesma altivez, coragem e atitude desafiadora que, de certa forma, deram causa à acusação. Evidentemente, muitos dentre os jurados tiveram a sensibilidade atingida da mesma forma que os acusadores e, por essa razão, ele acabou condenado à pena capital por uma estreita margem de votos. No discurso seguinte, ele teve a possibilidade de propor uma pena alternativa, como permitia a processualística vigente, mas — de forma contrária e coerente;  e mercê da certeza de que praticara o bem — propôs a maior homenagem devida a um ateniense: alimentar-se gratuitamente, às custas da cidade. Como corolário, sua pena foi confirmada por uma maior margem de votos. No último discurso, com a abordagem centrada no significado da morte, ele se dirige aos que votaram pela condenação, para reafirmar que a pena será aplicada por ter ele agido em consonância com a prática do bem e, em tom desafiante, assevera: “... E eu partirei agora condenado — por vocês — à pena de morte, enquanto eles [os acusadores], condenados — pela verdade — à mesquinhez e à injustiça.”; e em seguida, numa sentença com a força dos gigantes, declara-se “... livre para morrer.”. Depois, se dirige aos que lhe foram favoráveis, para caracterizar a morte como um bem, seja como um fim total ou como a passagem para outro lugar. E encerra o último discurso, usando a imagem da possibilidade de condenação de seus próprios filhos, se necessário, desde que submetica à prevalência da justiça.
Críton é outro célebre diálogo, desta feita, ocorrido na véspera da execução da pena, por ocasião da visita de um amigo grado e poderoso. Ele lhe trazia a proposta de fuga. Sócrates agiganta-se para debater a arquitetura do dever e da justiça. Jamais renunciaria a suas convicções. A melhor interpretação desse diálogo é a conceituação da ética, condicionada às noções da verdade e da justiça.
O grande filósofo, utilizando sua incomum genialidade, opôs-se aos poderosos da época e foi acusado de ímpio e fomentador de desvios da juventude. Por essa razão, foi processado e condenado à morte. Seu discurso de defesa perante os julgadores foi uma peça política, permeada de conceitos atinentes à ética e à moral. Assim, como desafiava os poderosos com a pregação que gerou a acusação, desafiou o sistema jurídico grego, mostrando altivez, qualificação intelectual e enorme capacidade de formulação de ideias. Diante do veredito, poderia ter transformado a condenação capital em punição mais branda, propondo ele próprio pena alternativa — o processo penal daquele tempo permitia esse procedimento —; mas sua integridade o impediu agir nessa direção: antes, propôs que vivesse à custa do estado, o que era considerado um dos maiores prêmios da época. Na véspera de sua execução, um amigo poderoso visitou-lhe no cárcere e propôs que fugisse e se exilasse. Mais uma vez, em nome da legalidade, da correção e do respeito à estrutura institucional, recusou-se a aceitar a oferta. É o alvorecer da ética em estado puro.
Louie Zamperini. No retorno à frequência de cinema — um passatempo favorito desde os primórdios de minha vida —, comecei 2015 com o pé direito. Assisti ao filme Invencível, dirigido por Angelina Jolie, com roteiro dos irmãos Cohen e baseado livro de Laura Hillenbrand e estrelado por Jack O’Conell.
O filme retrata a vida de Zamperini, campeão olímpico e herói de guerra. Ele foi um infante e adolescente problemático: contrariava as orientações paternas, criava problemas em casa e na escola. Na rua, bebia, brigava e roubava. A partir de meados da  adolescência, por influência e generosidade do irmão mais velho, descobriu o atletismo. Ironia ou não, as corridas da polícia durante a rebeldia juvenil teriam estimulado o desabrochar de seu talento. Ele se tornou campeão olímpico na Olimpíada de 1936, para onde fora com o objetivo de ambientar-se, imaginando que sua chance só chegaria quatro anos mais tarde, na então planejada Olimpíada de Tóquio.
Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, Zamperini foi compelido a encerrar sua carreira esportiva, ingressou na Força Aérea dos Estados Unidos na condição de atirador do bombardeiro B25 e foi guerrear os japoneses do outro lado do mundo. Em uma missão de combate, sua aeronave foi abatida sobre o oceano Pacífico e três integrantes da tripulação se salvaram e ficaram à deriva durante 43 dias em botes de salvamento de borracha — Zamperini, um piloto e um navegador.
O alimento que carregavam se esgotou nos primeiros dias. Um albatroz descuidado pousou na borda do bote. Uma mão salvadora com agilidade felina prendeu a ave pelas pernas, assegurando uma suposta refeição que, em realidade, consumiu dois tipos de energia: a primeira para consumir o alimento cru e o outro para expeli-lo via oral, com o risco de alguma parte do sistema digestivo seguir junto. O insucesso foi transformado em êxito, já que o que restou era considerado nobre pelos peixes que rodeavam o bote. Então, a sobrevivência foi garantida pela pesca inovadora, com isca de albatroz, de peixe cru e pela coleta de água da chuva.
Um dos guerreiros não suportou o longo tempo passado nas precaríssimas condições de náufragos e pereceu. Seu lançamento ao mar foi um dos momentos dramáticos da trajetória dos dois heróis. Um observador externo não deixa de imaginar um hipotético cenário em que o suposto último sobrevivente ficaria sem alguém para acompanhá-lo no momento derradeiro. Em realidade, eles não precisaram chegar a essa situação extrema. Um deles foi acordado pelo outro com duas notícias: a primeira que estavam sendo resgatados; e a segunda que o resgate estava sendo realizado pelos inimigos japoneses.
Zamperini enfrentou o maior desafio de sua vida no campo de concentração em que fora aprisionado. Sua biografia atlética foi estímulo para que o comandante do cativeiro o submetesse a agressões físicas, psicológicas e morais terríveis. Essas agressões atingiram o nível hediondo após sua recusa em aceitar benesses (passaria a viver fora da prisão, com todo o conforto possível, e especialmente, com alimentação farta e de alta qualidade) em troca da transmissão de mensagens mentirosas para o povo americano. A perseguição cessou temporariamente, com a promoção e remoção do militar que comandava o campo. Eles voltaram a se encontrar em outro campo de concentração e o tratamento degradante teve continuidade e só cessou com o fim da guerra.
O herói americano demonstrou não apenas uma resistência fenomenal no período em que esteve à deriva no oceano Pacífico, bem como nos campos de concentração, mas retirou de suas entranhas uma enorme resiliência ética e moral, ao enfrentar as adversidades que a maldade humana inimiga o submetera no período em que passara nos campos de concentração.  Angelina Jolie dirigiu um belo filme e prestou uma magnífica homenagem a quem apostou na prevalência da decência e da ética, não importando quão adversa seja a circunstância.
Stephen Hawking. Em meu aniversário, ganhei o livro A teoria de tudo, de Jane Hawking. A brilhante ex-esposa do notável físico decidira oferecer a seus contemporâneos sua visão da convivência durante cerca de duas décadas com Stephen Hawking. O que mais impressionou no livro? Bem, Jane tomou conhecimento da doença logo após conhecer Stephen. O diagnóstico indicava que ele era portador de Esclerose Lateral Amenotrópica (ELA) e que teria mais dois anos de vida. Mesmo alertado pelo pai de Stephen, decidiu encarar o desafio, namorou e se casou com ele. O livro não é somente um relato da saga dele;  é também um impressionante relato das emoções e do calvário da esposa como infatigável companheira e amiga; babá e quase enfermeira do paciente, em tempo integral, durante quase todo o tempo em que estiveram juntos; mãe de três filhos — surpreendentemente resultantes da parceria com Stephen —; ativista de causas de interesse coletivo; aluna de doutorado, conquanto sua tese tenha sido elaborada a conta-gotas; e cantora lírica no período final da convivência.
Dentre as indagações estimuladas pelo livro, por essenciais, destacaria algumas. Que motivações tivera uma moça bonita, jovem e inteligente para embarcar numa trajetória afetiva tão incomum? E tendo embarcado, o que a levara a manter o curso, sem arredar da direção escolhida, até que ele, marido, decidira que romperia o matrimônio? Em relação a ele, como alguém que fora tomado de doença tão grave, agressiva e degeneradora pôde manter, ao longo do tempo, o foco, a concentração, a disposição e a inexcedível energia para tornar-se um dos maiores cientistas do século XX? E mais do que isso, como ele desafiou e ainda desafia a doença e mantém-se até hoje, com mais de 70 anos, em atividade intelectual, à despeito de não falar, não mexer senão a mão e as pálpebras?
Com enorme satisfação, assisti ao filme baseado no livro da senhora Jane Hawking. Foi dirigido por James Marsh e estrelado por Eddie Redmayne  no papel do cientista e por Felicity Jones, no papel da esposa. Sobre o desempenho do ator pode-se afirmar que ele parece tão real, convincente e brilhante quanto o próprio Stephen Hawking. Com toda razão, com mérito de sobra, Redmayne foi laureado em 2015 com o Oscar de melhor ator.

Então, voltando à abertura deste texto, é inquestionável asseverar que Sócrates, Zamperini e Hawking são seres humanos de enorme coragem física e moral. Eles enfrentaram a adversidade com muita bravura. Eles se inserem no universo dos seres humanos invencíveis — enfatize-se pois o acerto da escolha do título do filme O Invencível, dirigido por Angelina Jolie para retratar a vida de Zamperini. O filósofo, o guerreiro e o cientista usaram a força e a fé — associadas com suas épicas existências — para transmitir um magnífico exemplo para seus contemporâneos e para a posteridade.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Clostermann e Saint-Exupéry


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Antoine de Saint-Exupéry morreu em 1944, no Mediterrâneo, pilotando uma aeronave P-38, da Força Aérea Francesa Livre. Essa força foi organizada e liderada por De Gaulle, em 1940, no início da Segunda Guerra Mundial, em face da rendição dos franceses aos alemães. O governo tutelado pelos germânicos foi liderado pelo Marechal Pétain, em Vichy, o que lhe causou, ao final da guerra, a condenação à pena de morte por traição.

Pierre Clostermann [*] nasceu no Brasil,  fez pilotagem no Aeroclube do Rio de Janeiro aos 16 anos e se tornou, aos vinte e quatro anos, o maior herói daquela Força Aérea na Segunda Guerra Mundial.  No livro Le Grande Cirque 2000, faz uma severa crítica a Saint-Exupéry. A referência a Saint-Exupéry está na introdução do livro citado e, numa tradução livre e meio irresponsável, é a seguinte:


 “Em uma carta a André Gide, Saint-Exupéry dá uma triste e depreciativa definição de coragem: ‘Um pouco de raiva, um pouco de vaidade, um prazer esportivo vulgar ...’. Eu quero muito concordar com a raiva porque eu a conheço, mas a vaidade? Terá sido por vaidade que Saint-Exupéry tentou compartilhar nossa luta pilotando um P-38 com três anos de atraso e depois de, porta-voz inconsciente do Governo de Vichy, ter explicado aos Estados Unidos que a França deveria se redimir e a Roosevelt que De Gaulle seria um segundo Hitler! Prazer esportivo vulgar? Então prossigamos! Prazer esportivo vulgar, quando há na extrema trajetória do medo, a morte e a nobreza de um sacrifício livremente praticado? Prazer esportivo vulgar para os pilotos argentinos nas Malvinas, caindo a 600 nós no meio da frota inglesa? Prazer esportivo vulgar? O que significam essas palavras para os pilotos camicases japoneses de vinte anos que viviam sua noite de jardim das oliveiras sabendo que o sol que se pôs no horizonte iluminara seu último dia? Palavras da parte de um excepcional escritor, ou auto-justificação?  Que viva a eternidade em paz, ele pagou o preço devido.”


         Saint-Exupéry adquiriu fama mundial com seus livros, dentre os quais o mais célebre é O pequeno príncipe. Por outro lado, conquanto herói francês, Clostermann é pouco conhecido, mas a versão que apresenta em seu livro dá o que pensar.  Afinal, trata-se de escritor de 11 livros, empresário bem sucedido e deputado da Assembleia Nacional, tendo sido reeleito sete vezes.  
a          Por oportuno, é imperioso indagar se a produção intelectual — científica, artística, literária, como por exemplo a do Saint-Exupéry — está desgarrada da conduta ética? Vale a expressão: “odeio esse caboclo, mas adoro sua obra!”, como asseverara Godard, em referência ao apoio de John Wayne aos republicanos americanos e ao magistral desempenho do ator no filme Rastros de ódio?

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terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Dúvida não-socrática: irritar-se ou não?

[Matéria acolhida e divulgada no Fórum de Leitores eletrônico do Estadão de 12/02/2015]

         No atinente à matéria “Com ferro foi ferida”, da Sra. Dora Kramer (Estadão, 10/2/2015), uma sequência não-socrática de perguntas que não querem calar-se é oportuna.
Uma presidente da República tem o direito de ficar irritada? Se tem, é um atributo bom de uma estadista ficar irritada com frequência?
A presidente do Conselho de uma corporação tem o direito de afirmar que tomou decisão baseada em parecer incompleto e falho? E se tem, ela tem o direito de ficar irritada com ela própria ou com o assessor que a enganou?
Uma presidente da República tem o direito de tomar a maioria de suas decisões de forma errada? E se tem, ela tem o direito de ficar irritada com ela própria ou com aqueles que sofreram as consequências de suas decisões?
Uma presidente da República tem o direito de mentir? E se tem, não estaria certo seu mentor ao afirmar que estavam tentando impedi-la de concluir o mandato? E se seu mentor estava certo, é correto que se queira impedi-la de continuar? E se é correto, não é o caso de asseverar: “Viva o mentor! Ele falou a verdade; ele indicou o que precisa ser feito; o que é imperioso que se faça”?  E nesse caso, ela tem o direito de ficar irritada com ela própria, com seu mentor ou com a sociedade?
Uma presidente da República tem o direito de ser a líder — de ser a presidente — de apenas uma parcela da população liderada? E se tem, eu tenho o direito de considerá-la presidente apenas da parcela que lhe agrada e ignorá-la solenemente; e de tentar impedi-la nos ditames da lei? Aí, ela tem o direito de ficar irritada com ela própria ou com a sociedade?

Enfim, a despeito das perguntas serem não-socráticas, muitos Sócrates são necessários na selva tupiniquim. Não se construiria uma civilização ocidental-tupiniquim, mas pelo menos teríamos de volta o bom humor e a elegância. Nem precisaríamos da ética e da moral.