O que há de
comum entre o grego Sócrates, o americano Louie Zamperini e o britânico Stephen
Hawking — sendo o primeiro separado dos demais por mais de dois milênios?
Sócrates. Ao ler um livro de 900 páginas, repousando na cama,
cochilei e o livro caiu em meu queixo. O sono foi-se instantaneamente. Fui à
livraria comprar os livros didáticos de minhas filhas e no fechamento do
negócio, fui informado de que se completasse a compra com mais algumas dezenas
de trocados, garantiria um bônus. Então,
escolhi alguns livros leves, pequenos e de baixo custo — afora exercer o
direito à vantagem ofertada, poderia ler deitado e sem risco.
Um dos livros — levíssimo, com
volume reduzido e custando R$ 9,00 — era A apologia de Sócrates, de Platão. Foi
uma bela aquisição. Deu para conhecer pela própria boca de Sócrates
(naturalmente, com formulação do autor, aluno daquele sábio grego, que transmitira
para a posteridade a herança do mestre, que nada deixara registrado) o que já lera
ou ouvira na forma de citações de outros autores. — a coragem moral de
Sócrates, a definição dos fundamentos da ética e um quase delineamento do que
hoje é chamado habitualmente de estado democrático de Direito.
O livro versa fundamentalmente
sobre o julgamento de Sócrates, ocorrido em 399 a. C., em Atenas, em face da
acusação de impiedade e corrupção dos jovens. Ele é organizado em três partes: Êutifron, A apologia de Sócrates, que
nomeia a publicação, e Críton.
Êutifon é um dos célebres diálogos, típicos da obra de Platão, onde
Sócrates questiona o adivinho Êutifron — este também envolvido em processo de
julgamento, dado que estava processando o próprio pai por homicídio de um
assassino — desqualifica o interlocutor ao mostrar que ele não tinha o
conhecimento que apregoava; apresenta evidências de que a busca do conhecimento
requer a suposição de ignorância e dúvida, de tal sorte que num processo racional
de indagações, surja a luz; e antecipa argumentos lógicos que utilizaria
posteriormente em sua defesa.
A apologia de Sócrates traz três discursos do filósofo no bojo de
seu julgamento pela acusação que lhe fora perpetrada. No primeiro, ele faz sua
própria defesa perante o corpo de 500 jurados. Com a abordagem concernente à
piedade — não para pedi-la, mas para conceituá-la — tem a mesma altivez, coragem
e atitude desafiadora que, de certa forma, deram causa à acusação.
Evidentemente, muitos dentre os jurados tiveram a sensibilidade atingida da
mesma forma que os acusadores e, por essa razão, ele acabou condenado à pena
capital por uma estreita margem de votos. No discurso seguinte, ele teve a
possibilidade de propor uma pena alternativa, como permitia a processualística
vigente, mas — de forma contrária e coerente; e mercê da certeza de que praticara o bem — propôs
a maior homenagem devida a um ateniense: alimentar-se gratuitamente, às custas
da cidade. Como corolário, sua pena foi confirmada por uma maior margem de
votos. No último discurso, com a abordagem centrada no significado da morte,
ele se dirige aos que votaram pela condenação, para reafirmar que a pena será
aplicada por ter ele agido em consonância com a prática do bem e, em tom
desafiante, assevera: “... E eu partirei
agora condenado — por vocês — à pena de morte, enquanto eles [os acusadores],
condenados — pela verdade — à mesquinhez e à injustiça.”; e em seguida,
numa sentença com a força dos gigantes, declara-se “... livre para morrer.”. Depois, se dirige aos que lhe foram
favoráveis, para caracterizar a morte como um bem, seja como um fim total ou
como a passagem para outro lugar. E encerra o último discurso, usando a imagem
da possibilidade de condenação de seus próprios filhos, se necessário, desde
que submetica à prevalência da justiça.
Críton é outro célebre diálogo, desta feita, ocorrido na véspera da
execução da pena, por ocasião da visita de um amigo grado e poderoso. Ele lhe
trazia a proposta de fuga. Sócrates agiganta-se para debater a arquitetura do
dever e da justiça. Jamais renunciaria a suas convicções. A melhor
interpretação desse diálogo é a conceituação da ética, condicionada às noções
da verdade e da justiça.
O grande
filósofo, utilizando sua incomum genialidade, opôs-se aos poderosos da época e
foi acusado de ímpio e fomentador de desvios da juventude. Por essa razão, foi
processado e condenado à morte. Seu discurso de defesa perante os julgadores
foi uma peça política, permeada de conceitos atinentes à ética e à moral.
Assim, como desafiava os poderosos com a pregação que gerou a acusação,
desafiou o sistema jurídico grego, mostrando altivez, qualificação intelectual e
enorme capacidade de formulação de ideias. Diante do veredito, poderia ter
transformado a condenação capital em punição mais branda, propondo ele próprio
pena alternativa — o processo penal daquele tempo permitia esse procedimento —;
mas sua integridade o impediu agir nessa direção: antes, propôs que vivesse à
custa do estado, o que era considerado um dos maiores prêmios da época. Na
véspera de sua execução, um amigo poderoso visitou-lhe no cárcere e propôs que
fugisse e se exilasse. Mais uma vez, em nome da legalidade, da correção e do
respeito à estrutura institucional, recusou-se a aceitar a oferta. É o
alvorecer da ética em estado puro.
Louie Zamperini. No retorno à frequência de cinema — um passatempo
favorito desde os primórdios de minha vida —, comecei 2015 com o pé direito.
Assisti ao filme Invencível, dirigido por Angelina Jolie, com roteiro dos irmãos
Cohen e baseado livro de Laura Hillenbrand e
estrelado por Jack O’Conell.
O filme retrata a vida de Zamperini,
campeão olímpico e herói de guerra. Ele foi um infante e adolescente problemático:
contrariava as orientações paternas, criava problemas em casa e na escola. Na
rua, bebia, brigava e roubava. A partir de meados da adolescência, por influência e generosidade
do irmão mais velho, descobriu o atletismo. Ironia ou não, as corridas da
polícia durante a rebeldia juvenil teriam estimulado o desabrochar de seu
talento. Ele se tornou campeão olímpico na Olimpíada de 1936, para onde fora
com o objetivo de ambientar-se, imaginando que sua chance só chegaria quatro
anos mais tarde, na então planejada Olimpíada de Tóquio.
Com a eclosão da Segunda Guerra
Mundial, Zamperini foi compelido a encerrar sua carreira esportiva, ingressou
na Força Aérea dos Estados Unidos na condição de atirador do bombardeiro B25 e foi
guerrear os japoneses do outro lado do mundo. Em uma missão de combate, sua
aeronave foi abatida sobre o oceano Pacífico e três integrantes da tripulação
se salvaram e ficaram à deriva durante 43 dias em botes de salvamento de
borracha — Zamperini, um piloto e um navegador.
O alimento que carregavam se
esgotou nos primeiros dias. Um albatroz descuidado pousou na borda do bote. Uma
mão salvadora com agilidade felina prendeu a ave pelas pernas, assegurando uma
suposta refeição que, em realidade, consumiu dois tipos de energia: a primeira
para consumir o alimento cru e o outro para expeli-lo via oral, com o risco de
alguma parte do sistema digestivo seguir junto. O insucesso foi transformado em
êxito, já que o que restou era considerado nobre pelos peixes que rodeavam o
bote. Então, a sobrevivência foi garantida pela pesca inovadora, com isca de
albatroz, de peixe cru e pela coleta de água da chuva.
Um dos guerreiros não suportou o
longo tempo passado nas precaríssimas condições de náufragos e pereceu. Seu
lançamento ao mar foi um dos momentos dramáticos da trajetória dos dois heróis.
Um observador externo não deixa de imaginar um hipotético cenário em que o
suposto último sobrevivente ficaria sem alguém para acompanhá-lo no momento
derradeiro. Em realidade, eles não precisaram chegar a essa situação extrema.
Um deles foi acordado pelo outro com duas notícias: a primeira que estavam
sendo resgatados; e a segunda que o resgate estava sendo realizado pelos inimigos
japoneses.
Zamperini enfrentou o maior
desafio de sua vida no campo de concentração em que fora aprisionado. Sua
biografia atlética foi estímulo para que o comandante do cativeiro o submetesse
a agressões físicas, psicológicas e morais terríveis. Essas agressões atingiram
o nível hediondo após sua recusa em aceitar benesses (passaria a viver fora da
prisão, com todo o conforto possível, e especialmente, com alimentação farta e
de alta qualidade) em troca da transmissão de mensagens mentirosas para o povo
americano. A perseguição cessou temporariamente, com a promoção e remoção do
militar que comandava o campo. Eles voltaram a se encontrar em outro campo de
concentração e o tratamento degradante teve continuidade e só cessou com o fim
da guerra.
O herói americano demonstrou não
apenas uma resistência fenomenal no período em que esteve à deriva no oceano
Pacífico, bem como nos campos de concentração, mas retirou de suas entranhas
uma enorme resiliência ética e moral, ao enfrentar as adversidades que a
maldade humana inimiga o submetera no período em que passara nos campos de
concentração. Angelina Jolie dirigiu um
belo filme e prestou uma magnífica homenagem a quem apostou na prevalência da
decência e da ética, não importando quão adversa seja a circunstância.
Stephen Hawking. Em meu aniversário, ganhei o livro A
teoria de tudo, de Jane Hawking. A brilhante ex-esposa do notável
físico decidira oferecer a seus contemporâneos sua visão da convivência durante
cerca de duas décadas com Stephen Hawking. O que mais impressionou no livro?
Bem, Jane tomou conhecimento da doença logo após conhecer Stephen. O
diagnóstico indicava que ele era portador de Esclerose Lateral Amenotrópica
(ELA) e que teria mais dois anos de vida. Mesmo alertado pelo pai de Stephen,
decidiu encarar o desafio, namorou e se casou com ele. O livro não é somente um
relato da saga dele; é também um impressionante
relato das emoções e do calvário da esposa como infatigável companheira e amiga;
babá e quase enfermeira do paciente, em tempo integral, durante quase todo o
tempo em que estiveram juntos; mãe de três filhos — surpreendentemente
resultantes da parceria com Stephen —; ativista de causas de interesse
coletivo; aluna de doutorado, conquanto sua tese tenha sido elaborada a
conta-gotas; e cantora lírica no período final da convivência.
Dentre as indagações estimuladas
pelo livro, por essenciais, destacaria algumas. Que motivações tivera uma moça
bonita, jovem e inteligente para embarcar numa trajetória afetiva tão incomum?
E tendo embarcado, o que a levara a manter o curso, sem arredar da direção
escolhida, até que ele, marido, decidira que romperia o matrimônio? Em relação
a ele, como alguém que fora tomado de doença tão grave, agressiva e
degeneradora pôde manter, ao longo do tempo, o foco, a concentração, a
disposição e a inexcedível energia para tornar-se um dos maiores cientistas do
século XX? E mais do que isso, como ele desafiou e ainda desafia a doença e
mantém-se até hoje, com mais de 70 anos, em atividade intelectual, à despeito
de não falar, não mexer senão a mão e as pálpebras?
Com enorme satisfação, assisti
ao filme baseado no livro da senhora Jane Hawking. Foi dirigido por James Marsh
e estrelado por Eddie Redmayne no papel
do cientista e por Felicity Jones, no papel da esposa. Sobre o desempenho do
ator pode-se afirmar que ele parece tão real, convincente e brilhante quanto o
próprio Stephen Hawking. Com toda razão, com mérito de sobra, Redmayne foi
laureado em 2015 com o Oscar de melhor ator.
Então, voltando à abertura deste
texto, é inquestionável asseverar que Sócrates, Zamperini e Hawking são seres
humanos de enorme coragem física e moral. Eles enfrentaram a adversidade com
muita bravura. Eles se inserem no universo dos seres humanos invencíveis — enfatize-se
pois o acerto da escolha do título do filme O Invencível, dirigido por Angelina Jolie para retratar a vida de Zamperini. O filósofo, o guerreiro e o cientista usaram a força e a fé — associadas com suas épicas existências — para
transmitir um magnífico exemplo para seus contemporâneos e para a posteridade.