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Em 6 de junho
de 1994, eu vivenciei o privilégio de estar em Paris. A capital francesa estava em festa. Comemorava-se os 50 anos da invasão da
Normandia, realizada pelos Aliados, os quais subsequentemente libertariam a
capital francesa e toda a França do jugo nazista. Estava sendo comemorada a
vitória da maior operação militar da História da Humanidade [1]. As pessoas se
emocionavam, choravam, sorriam, cantavam, vibravam, enfim, celebravam. A
televisão mostrou o salto dos veteranos paraquedistas, repetindo a proeza de
cinquenta anos antes, quando saltaram à retaguarda das forças alemãs. Na volta
ao Brasil, li ou ouvi — e inicialmente não acreditei — mas era verdade: George H.
Bush, pai, ex-presidente dos Estados Unidos, com mais de setenta anos, também
saltou com os heróis dos condores.[1]
Revisão
Em 6 de agosto, três meses depois da primeira versão
deste texto, percebi que a invasão da Normandia não foi a maior operação militar
da História.
Conforme Andrew Roberts, em Masters and Commanders: How Roosevelt, Churchil, Marshall and Brook Won
the War in the West, de 2008, a maior operação militar foi a Operação Zitadelle, em que 50 divisões da
Alemanha atacaram o saliente de Kursk, na Rússia em 5 de julho de 1943. Mais de
2 milhões de homens foram engajados dos dois lados.
As forças alemãs
compreendiam 900 mil militares, 2.700 tanques e canhões de assalto, 10 mil
peças de artilharia e 200 aviões.
O marechal Zhukov respondeu com a Operação Kutuzov, apropriadamente batizada em
homenagem ao herói da campanha de 1812, uma vez que implicou permitir aos
alemães que atacassem primeiro, antes de um contra-ataque maciço uma semana
depois, em 12 de julho. A batalha gigantesca continuou por uma área
aproximadamente do mesmo tamanho do Reino Unido antes de ser finalmente vencida
pelos russos em 17 de agosto.
Em meados de
2006, li uma curta matéria no jornal O
Globo, em que era noticiada a realização, montagem e futuro lançamento de
um documentário pelo baterista João Barone, da banda Os Paralamas do Sucesso, com o título Um brasileiro no dia D [2].
Barone, um aficionado por história da Segunda Guerra Mundial — seu pai fora
pracinha da Força Expedicionária Brasileira —, embarcou com seu veículo Jeep
para a França visando percorrer os caminhos dos Aliados na campanha contra os
nazistas em território francês em 1944. E assim ele realizou a película
dedicada a seu pai e cujo tema privilegiava Pierre Clostermann, o tal brasileiro
que participou da invasão da Normandia em 1944, como oficial da Força Aérea da
França Livre. Na notícia de O Globo
era divulgada também a morte de Clostermann, ocorrida em 22 de março de 2006,
em Montesquieu-des-Albères, na França.
[2]
O documentário Um Brasileiro no dia D, que deve ter
sido lançado em 2008 ou 2009, pode ser encontrado no seguinte endereço:
Ao ler a
notícia em O Globo, o nome Pierre
Clostermann tocou o sino de minhas recordações. Pensei muito, vasculhei as
profundezas da memória e consegui recuperar o que já tinha se apagado na poeira
do tempo. Em 1967, no segundo ano do ensino médio da Escola Preparatória de
Cadetes do Ar, quando ainda me propunha a ser piloto da Força Aérea Brasileira (não
logrei êxito nesse intento porque em face de deficiência da visão não foi
possível a aprovação no exame médico de acesso à Academia da Força Aérea), li o
livro O grande circo, escrito por Pierre Clostermann. Era um livro
indispensável para todo candidato a piloto da Força Aérea. O grande ídolo,
eleito quatro décadas antes, e que entusiasmou
quem se propunha vivenciar as aventuras de enfrentar as enormes dimensões
vazias da atmosfera, deixara o reino terrestre.
Em 2007, eu chefiava
o Centro Tecnológico do Exército (CTEx) e tive que interagir com um diretor da
empresa europeia MBDA, do setor de armamentos, para rescindir a parceria contratual
para o desenvolvimento conjunto de um míssil (à época da formalização do
contrato, os parceiros eram o Exército Brasileiro e empresa italiana, que
depois foi absorvida pela MBDA). O projeto estava parado há mais de cinco anos
porque as duas partes deixaram de ter interesse mútuo [3]. Cerca de seis dezenas de
milhões de reais (em valores corrigidos para 2007) foram despendidas e o
empreendimento estava fadado ao insucesso e à perda total por causa da
pendência contratual. Com a atuação eficaz da equipe do CTEx foi possível
trazer o diretor da MBDA ao Brasil para solucionar o contencioso jurídico.
[3]
Na exposição de material LAAD/2007, no Rio de Janeiro, por
proposta do CTEx, o chefe do Departamento de Ciência e Tecnologia do Exército e
o diretor da MBDA assinaram o distrato do contrato do artefato. Subsequentemente,
tive a alegria de assinar o contrato com uma empresa nacional de propriedade de
brasileiros e com capital majoritariamente brasileiro para a continuação do
projeto e a fabricação em série das primeiras sessenta unidades, com a vantagem
de ter conquistado uma parceria com a Marinha do Brasil, que também realizou a
contratação de um lote.
Entre os
assessores do empresário francês da MBDA estava presente o Jean Pierre, um
franco-brasileiro filho de pai francês e mãe brasileira. Comentei com ele que
há muito tempo eu lera um livro escrito por outro franco-brasileiro, com
paternidade similar. Referia-me ao livro O grande circo, do Clostermann. Ele
prontamente me corrigiu e disse que o herói francês era nascido no Brasil, mas o
pai e a mãe, ambos, eram franceses. Eles estavam aqui porque o pai estava em
missão diplomática. Ele perguntou como era o meu francês; respondi que me
comunicava minimamente e lia com alguma eficácia nesse idioma. O diálogo se
encerrou. Dois meses depois, recebi uma encomenda internacional enviada pelo
Jean Pierre. Ele me presenteou com dois livros em francês: Le grand cirque 2000, uma
versão ampliada de O grande circo; e Une
vie pas comme les autres, sendo
este o décimo primeiro escrito por Pierre Clostermann.
E assim recordei
e ampliei um mínimo de conhecimento sobre os combates aéreos envolvendo
franceses e ingleses na Segunda Guerra Mundial e sobre Pierre Clostermann, o
maior herói da aviação francesa, ao que eu saiba, de todos os tempos.
Ele nasceu no
Brasil em 1921 e aqui permaneceu até completar cinco anos. Em seguida foi para
a França, país de onde seu pai era originário. Em 1937, aos dezesseis anos,
retornou ao Brasil e fez o curso de pilotagem no Aeroclube do Rio de Janeiro.
Após o recebimento de brevê de piloto, Clostermann seguiu para a Califórnia,
nos Estados Unidos, para cursar Engenharia Aeronáutica e pilotagem comercial.
Em 1940, ele tomou conhecimento do apelo do General Charles de Gaulle [4], que não
aceitou a rendição e parceria da França com o regime nazista (formalizada pelo
chamado governo de Vichy, presidido pelo General Pétain) e organizou as Forças
Francesas Livres para lutar pela derrota do nazismo.
[4]
Em 24 de junho de 1940, de Gaulle discursou pela rádio BBC.
A frase síntese dirigida a seus compatriotas é:
“Officier français, soldats français, marins français, aviateurs français,
ingénieurs français, où que vous soyez, efforcez-vous de rejoindre ceux qui
veulent combattre encore!”
__________________________________
“Oficiais
franceses, soldados franceses, marinheiros franceses, aviadores franceses,
engenheiros franceses, onde quer que vocês se encontrem, esforcem-se para se
juntar àqueles que ainda querem combater!”.
Eis o discurso original do Gen De Gaulle transmitido pela BBC de Londres:
————————————————————————
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[Clique para ouvir o discurso]
Estimulado por
seu pai, combatente da Primeira Guerra Mundial, Clostermann, que acabara de
concluir o curso de Engenharia e de obter a certificação de piloto comercial na
Califórnia, dirigiu-se para o Brasil, trabalhou no jornal O Correio da Manhã, durante três meses, e depois deslocou-se para o
Uruguai, onde tomou um navio e foi encontrar-se com de Gaulle em Londres. Ele
ingressou na Força Aérea Livre e na Real Força Aérea Britânica. Aos 24 anos,
ele se tornou o maior piloto de caça da História francesa.
Em 1945,
coberto de honrarias, ele se desmobilizou da Força Aérea da França. Aos 24
anos, tinha sobrevivido a 400 missões de guerra na aviação, totalizando 600 horas
de voo e 33 vitórias aéreas (vale dizer, 33 aviões inimigos abatidos por ele).
Aos 25 anos, foi eleito deputado pela Alsácia. Subsequentemente, combateu por
18 meses na Argélia como piloto de caça. Conforme consta do livro Le
grand cirque 2000, “Reelegeu-se
outras oito vezes para ocupar um assento no Parlamento. Demitiu-se quando da
morte do General de Gaulle. Industrial de talento, fundou uma fábrica, a
Reims-Aviation, onde construiu mais de 5 mil aviões de turismo. Vice-presidente
da Cessna nos EUA, a líder mundial na produção de aviões leves, ocupou também
um cargo de administrador na Renault e na Avions Marcel Dassault.”
Seu último
livro pode ser sintetizado em três vertentes fundamentais: a guerra, relembrada
em seus aspectos essenciais; a pesca, uma de suas paixões; e os amigos, que
cultivara com proficiência --- entre outros, Romain Gary, Ernest Hemingway e
Charles de Gaulle (este talvez não exatamente um amigo, mas uma extraordinária
referência). Não esqueceu o Brasil, tratado em dois capítulos, com extrema
simpatia. Talvez, uma das passagens mais extraordinárias seja o relato da morte
do General de Gaulle [5]. Inicialmente, assevera que essa passagem, ele a registrou
em seu caderno de anotações para se lembrar mais tarde, com clareza, das horas
de dor.
[5] Assim, Clostermann descreve o evento em Une vie pas comme les autres:
“De Gaulle est mort
hier soir. J’ai pleuré. Étai-ce sur moi ou sur la fin de quelque chose qui me
dépasse? Comme l’a écrit Roman Gary, ami et mon compagnon dans l’Ordre de la
Libération, dans Time USA: ‘An old man walked away, and took with
him our youth.’ (Un vieil homme est parti
emportant avec lui notre jeunesse.) --- cette jeunesse que nous lui avion
apportée volontairement à Londres!”
“Les Compagnons de
la Libération seront les seuls avec sa famille à accompagner au petit cimetière
de Colombey. C’est l’unique privilège qu’il nous aura accordé depuis 1940, mis
à part son affection sans faille et celui de mourir pour la France sous
l’uniform français! ”.
________________________________
“De Gaulle morreu
ontem. Eu chorei. Por minha perda ou pelo fim de qualquer coisa que ainda me assombra?
Como asseverou Roman Gary [*], amigo
e camarada da Ordre da la Libération, em
Time USA: ‘Um velho homem se foi,
levando consigo nossa juventude.’ ( .... )
— essa juventude que nós lhe
entregamos voluntariamente em Londres.”
“Os camaradas da
Libertação foram os únicos com sua família a acompanhá-lo no pequeno cemitério
de Colombey. A esse privilégio único que nos fora concedido, desde 1940, acresça-se
sua afeição sem jaça e aquele relativo à sua morte pela França com o uniforme
francês!”.
[*] A amizade de Roman Gary com Pierre Clostermann foi
iniciada quando ambos eram pilotos de guerra na Força Aérea da França Livre, em
Londres. Gary nasceu na Lituânia, mudou-se para a França e tornou-se cidadão
francês.
Depois da
Segunda Guerra Mundial, Gary tornou-se notável escritor, diretor e roteirista de
cinema. Foi co-autor do roteiro do filme “O mais longo dos dias” e, por seus
contatos com a sétima arte, foi marido da atriz Jean Seberg.
Gary foi o
único autor a ser galardoado duas vezes com o prêmio Goncourt, o mais importante
da Literatura francesa. O procedimento para a concessão dessa comenda impunha
que só fosse concedida uma única vez para a mesma pessoa. Para ganhar a segunda
vez, ele concorreu com o pseudônimo Émile Ajar, fato que só foi esclarecido
após sua morte, por suicídio com arma de fogo.
Hoje, 6 de
junho de 2014, estão sendo comemorados 70 anos da Operação Overlord, como foi denominada
a invasão da França, a partir da Normandia, na Segunda Guerra Mundial, e que foi pactuada
pelo presidente dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt e pelo Primeiro
Ministro do Reino Unido, Winston Churchil. O contingente de mais de um milhão
de militares aliados foi comandado pelo General Dwigth D. Eisenhower, que mais
tarde se tornaria presidente americano.
Provavelmente,
um único militar nascido no Brasil participou daquela invasão, o Tenente Pierre
Clostermann. Mas cerca de 25.000 brasileiros participaram da Segunda Guerra
Mundial [6], nos campos de batalha europeus. À semelhança de Pierre
Clostermann, todos tiveram inexcedível jornada de sacrifício e heroísmo — bem
como medo, que o herói francês descreve com clareza em seus livros. Todos deram
uma insuperável contribuição para que o hediondo autoritarismo nazista fosse
varrido da face da Terra. É bem verdade que, em mentes perturbadas, doentias
— poucas é certo! —, esse flagelo continua presente. De qualquer sorte, contraímos
uma imorredoura dívida com todos os heróis brasileiros e especialmente, com as
mais de quatro centenas que pereceram nos campos de batalha. Eles merecem o mesmo
respeito, gratidão e homenagem que são concedidos a Pierre Clostermann [7]. Ao lado
desse franco-brasileiro, todos que enfrentaram o perigo e permitiram-se a
oferta da própria vida para o cumprimento da missão, são a nossa eterna referência.
[6]
[7]
[6]
Lamentavelmente, pouco é escrito e publicado sobre a participação brasileira na Segunda Guerra Mundial. Não raro, nossos intelectuais, e também os cineastas, ignoram essa epopeia.
Lembro-me que meu velho pai, na época, um lavrador semianalfabeto, que me ensinou as primeiras letras, portava consigo vários livros — e talvez por isso, depois, conseguira ser sucessivamente tabelião do registro civil, presidente de partido político, juiz de paz e comerciante, em Rochedo, onde nasci.
Um desses livros, que li por volta dos oito anos e esqueci o título, fora escrito por Arabutã Sampaio do Aragarças (este nome precisa ser verificado em confirmado, quando eu obtiver o livro), oficial da Força Expedicionária Brasileira. Tratava da participação dos militares brasileiros na Itália em 1945.
Transcorridos 57 anos, tentei por intermédio da Internet, recuperar a obra. Não tive sucesso. Continuarei tentando. Quem sabe algum sebo ou algum descendente de participante da Segunda Guerra Mundial possa permitir que eu obtenha essa raridade.
Ademais, quem sabe algum dia eu possa ter a ventura de ir à Itália e percorrer o caminho que os heróis brasileiros percorreram, combatendo o bom combate. De preferência, tendo relido o livro do Arabutã. De preferência, ignorando minhas limitações e escrevendo um pequeno texto alusivo ao caminho e a esse militar que o trilhou.
[7]
Como curiosidade, convém refletir sobre a opinião de Clostermann sobre Saint-Exupéry, também piloto de guerra francês. Ela está relatada em:
[Clique para acessar ao artigo]
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