sexta-feira, 6 de junho de 2014

Memórias -- Um brasileiro no dia D e os brasileiros na Itália



–––––––––––––––––––––––––––––––––
VER TAMBÉM

–––––––––––––––––––––––––––––––––
       Em 6 de junho de 1994, eu vivenciei o privilégio de estar em Paris. A capital francesa estava em festa. Comemorava-se os 50 anos da invasão da Normandia, realizada pelos Aliados, os quais subsequentemente libertariam a capital francesa e toda a França do jugo nazista. Estava sendo comemorada a vitória da maior operação militar da História da Humanidade [1]. As pessoas se emocionavam, choravam, sorriam, cantavam, vibravam, enfim, celebravam. A televisão mostrou o salto dos veteranos paraquedistas, repetindo a proeza de cinquenta anos antes, quando saltaram à retaguarda das forças alemãs. Na volta ao Brasil, li ou ouvi — e inicialmente não acreditei — mas era verdade: George H. Bush, pai, ex-presidente dos Estados Unidos, com mais de setenta anos, também saltou com os heróis dos condores.
       Neste texto, rememoro alguns fatos correlacionados com a épica invasão da França pelos Aliados na Segunda Guerra Mundial.


[1] 
Revisão
Em 6 de agosto, três meses depois da primeira versão deste texto, percebi que a invasão da Normandia não foi a maior operação militar da História.
Conforme Andrew Roberts, em Masters and Commanders: How Roosevelt, Churchil, Marshall and Brook Won the War in the West, de 2008, a maior operação militar foi a Operação Zitadelle, em que 50 divisões da Alemanha atacaram o saliente de Kursk, na Rússia em 5 de julho de 1943. Mais de 2 milhões de homens foram engajados dos dois lados. 
As forças alemãs compreendiam 900 mil militares, 2.700 tanques e canhões de assalto, 10 mil peças de artilharia e 200 aviões. 
O marechal Zhukov respondeu com a Operação Kutuzov, apropriadamente batizada em homenagem ao herói da campanha de 1812, uma vez que implicou permitir aos alemães que atacassem primeiro, antes de um contra-ataque maciço uma semana depois, em 12 de julho. A batalha gigantesca continuou por uma área aproximadamente do mesmo tamanho do Reino Unido antes de ser finalmente vencida pelos russos em 17 de agosto.


          Em meados de 2006, li uma curta matéria no jornal O Globo, em que era noticiada a realização, montagem e futuro lançamento de um documentário pelo baterista João Barone, da banda Os Paralamas do Sucesso, com o título Um brasileiro no dia D [2]. Barone, um aficionado por história da Segunda Guerra Mundial — seu pai fora pracinha da Força Expedicionária Brasileira —, embarcou com seu veículo Jeep para a França visando percorrer os caminhos dos Aliados na campanha contra os nazistas em território francês em 1944. E assim ele realizou a película dedicada a seu pai e cujo tema privilegiava Pierre Clostermann, o tal brasileiro que participou da invasão da Normandia em 1944, como oficial da Força Aérea da França Livre. Na notícia de O Globo era divulgada também a morte de Clostermann, ocorrida em 22 de março de 2006, em Montesquieu-des-Albères, na França.


[2] 
O documentário Um Brasileiro no dia D, que deve ter sido lançado em 2008 ou 2009, pode ser encontrado no seguinte endereço:
—————————————
Um Brasileiro no Dia D
—————————————
[Clique para assistir ao vídeo]

Ao ler a notícia em O Globo, o nome Pierre Clostermann tocou o sino de minhas recordações. Pensei muito, vasculhei as profundezas da memória e consegui recuperar o que já tinha se apagado na poeira do tempo. Em 1967, no segundo ano do ensino médio da Escola Preparatória de Cadetes do Ar, quando ainda me propunha a ser piloto da Força Aérea Brasileira (não logrei êxito nesse intento porque em face de deficiência da visão não foi possível a aprovação no exame médico de acesso à Academia da Força Aérea), li o livro O grande circo, escrito por Pierre Clostermann. Era um livro indispensável para todo candidato a piloto da Força Aérea. O grande ídolo, eleito quatro décadas antes,  e que entusiasmou quem se propunha vivenciar as aventuras de enfrentar as enormes dimensões vazias da atmosfera, deixara o reino terrestre.
Em 2007, eu chefiava o Centro Tecnológico do Exército (CTEx) e tive que interagir com um diretor da empresa europeia MBDA, do setor de armamentos, para rescindir a parceria contratual para o desenvolvimento conjunto de um míssil (à época da formalização do contrato, os parceiros eram o Exército Brasileiro e empresa italiana, que depois foi absorvida pela MBDA). O projeto estava parado há mais de cinco anos porque as duas partes deixaram de ter interesse mútuo [3]. Cerca de seis dezenas de milhões de reais (em valores corrigidos para 2007) foram despendidas e o empreendimento estava fadado ao insucesso e à perda total por causa da pendência contratual. Com a atuação eficaz da equipe do CTEx foi possível trazer o diretor da MBDA ao Brasil para solucionar o contencioso jurídico.


[3] 
Na exposição de material LAAD/2007, no Rio de Janeiro, por proposta do CTEx, o chefe do Departamento de Ciência e Tecnologia do Exército e o diretor da MBDA assinaram o distrato do contrato do artefato. Subsequentemente, tive a alegria de assinar o contrato com uma empresa nacional de propriedade de brasileiros e com capital majoritariamente brasileiro para a continuação do projeto e a fabricação em série das primeiras sessenta unidades, com a vantagem de ter conquistado uma parceria com a Marinha do Brasil, que também realizou a contratação de um lote.

Entre os assessores do empresário francês da MBDA estava presente o Jean Pierre, um franco-brasileiro filho de pai francês e mãe brasileira. Comentei com ele que há muito tempo eu lera um livro escrito por outro franco-brasileiro, com paternidade similar. Referia-me ao livro O grande circo, do Clostermann. Ele prontamente me corrigiu e disse que o herói francês era nascido no Brasil, mas o pai e a mãe, ambos, eram franceses. Eles estavam aqui porque o pai estava em missão diplomática. Ele perguntou como era o meu francês; respondi que me comunicava minimamente e lia com alguma eficácia nesse idioma. O diálogo se encerrou. Dois meses depois, recebi uma encomenda internacional enviada pelo Jean Pierre. Ele me presenteou com dois livros em francês: Le grand cirque 2000, uma versão ampliada de O grande circo;  e Une vie pas comme les autres,  sendo este o décimo primeiro escrito por Pierre Clostermann.
E assim recordei e ampliei um mínimo de conhecimento sobre os combates aéreos envolvendo franceses e ingleses na Segunda Guerra Mundial e sobre Pierre Clostermann, o maior herói da aviação francesa, ao que eu saiba, de todos os tempos.
Ele nasceu no Brasil em 1921 e aqui permaneceu até completar cinco anos. Em seguida foi para a França, país de onde seu pai era originário. Em 1937, aos dezesseis anos, retornou ao Brasil e fez o curso de pilotagem no Aeroclube do Rio de Janeiro. Após o recebimento de brevê de piloto, Clostermann seguiu para a Califórnia, nos Estados Unidos, para cursar Engenharia Aeronáutica e pilotagem comercial. Em 1940, ele tomou conhecimento do apelo do General Charles de Gaulle [4], que não aceitou a rendição e parceria da França com o regime nazista (formalizada pelo chamado governo de Vichy, presidido pelo General Pétain) e organizou as Forças Francesas Livres para lutar pela derrota do nazismo.


[4] 
Em 24 de junho de 1940, de Gaulle discursou pela rádio BBC. A frase síntese dirigida a seus compatriotas é:
“Officier français, soldats français, marins français, aviateurs français, ingénieurs français, où que vous soyez, efforcez-vous de rejoindre ceux qui veulent combattre encore!”
__________________________________
“Oficiais franceses, soldados franceses, marinheiros franceses, aviadores franceses, engenheiros franceses, onde quer que vocês se encontrem, esforcem-se para se juntar àqueles que ainda querem combater!”.

Eis o discurso original do Gen De Gaulle transmitido pela BBC de Londres:

————————————————————————
————————————————————————
[Clique para ouvir o discurso]


Estimulado por seu pai, combatente da Primeira Guerra Mundial, Clostermann, que acabara de concluir o curso de Engenharia e de obter a certificação de piloto comercial na Califórnia, dirigiu-se para o Brasil, trabalhou no jornal O Correio da Manhã, durante três meses, e depois deslocou-se para o Uruguai, onde tomou um navio e foi encontrar-se com de Gaulle em Londres. Ele ingressou na Força Aérea Livre e na Real Força Aérea Britânica. Aos 24 anos, ele se tornou o maior piloto de caça da História francesa.
Em 1945, coberto de honrarias, ele se desmobilizou da Força Aérea da França. Aos 24 anos, tinha sobrevivido a 400 missões de guerra na aviação, totalizando 600 horas de voo e 33 vitórias aéreas (vale dizer, 33 aviões inimigos abatidos por ele). Aos 25 anos, foi eleito deputado pela Alsácia. Subsequentemente, combateu por 18 meses na Argélia como piloto de caça. Conforme consta do livro Le grand cirque 2000, “Reelegeu-se outras oito vezes para ocupar um assento no Parlamento. Demitiu-se quando da morte do General de Gaulle. Industrial de talento, fundou uma fábrica, a Reims-Aviation, onde construiu mais de 5 mil aviões de turismo. Vice-presidente da Cessna nos EUA, a líder mundial na produção de aviões leves, ocupou também um cargo de administrador na Renault e na Avions Marcel Dassault.
Seu último livro pode ser sintetizado em três vertentes fundamentais: a guerra, relembrada em seus aspectos essenciais; a pesca, uma de suas paixões; e os amigos, que cultivara com proficiência --- entre outros, Romain Gary, Ernest Hemingway e Charles de Gaulle (este talvez não exatamente um amigo, mas uma extraordinária referência). Não esqueceu o Brasil, tratado em dois capítulos, com extrema simpatia. Talvez, uma das passagens mais extraordinárias seja o relato da morte do General de Gaulle [5]. Inicialmente, assevera que essa passagem, ele a registrou em seu caderno de anotações para se lembrar mais tarde, com clareza, das horas de dor.


[5] Assim, Clostermann descreve o evento em Une vie pas comme les autres:
“De Gaulle est mort hier soir. J’ai pleuré. Étai-ce sur moi ou sur la fin de quelque chose qui me dépasse? Comme l’a écrit Roman Gary, ami et mon compagnon dans l’Ordre de la Libération, dans Time USA: ‘An old man walked away, and took with him our youth.’ (Un vieil homme est parti emportant avec lui notre jeunesse.) --- cette jeunesse que nous lui avion apportée volontairement à Londres!
“Les Compagnons de la Libération seront les seuls avec sa famille à accompagner au petit cimetière de Colombey. C’est l’unique privilège qu’il nous aura accordé depuis 1940, mis à part son affection sans faille et celui de mourir pour la France sous l’uniform français! ”.
________________________________
De Gaulle morreu ontem. Eu chorei. Por minha perda ou pelo fim de qualquer coisa que ainda me assombra? Como asseverou Roman Gary [*], amigo e camarada da Ordre da la Libération,  em Time USA: ‘Um velho homem se foi, levando consigo nossa juventude.’ ( .... )   — essa juventude que nós lhe entregamos voluntariamente em Londres.”
Os camaradas da Libertação foram os únicos com sua família a acompanhá-lo no pequeno cemitério de Colombey. A esse privilégio único que nos fora concedido, desde 1940, acresça-se sua afeição sem jaça e aquele relativo à sua morte pela França com o uniforme francês!”.
[*] A amizade de Roman Gary com Pierre Clostermann foi iniciada quando ambos eram pilotos de guerra na Força Aérea da França Livre, em Londres. Gary nasceu na Lituânia, mudou-se para a França e tornou-se cidadão francês.
       Depois da Segunda Guerra Mundial, Gary tornou-se notável escritor, diretor e roteirista de cinema. Foi co-autor do roteiro do filme “O mais longo dos dias” e, por seus contatos com a sétima arte, foi marido da atriz Jean Seberg.
       Gary foi o único autor a ser galardoado duas vezes com o prêmio Goncourt, o mais importante da Literatura francesa. O procedimento para a concessão dessa comenda impunha que só fosse concedida uma única vez para a mesma pessoa. Para ganhar a segunda vez, ele concorreu com o pseudônimo Émile Ajar, fato que só foi esclarecido após sua morte, por suicídio com arma de fogo.

Hoje, 6 de junho de 2014, estão sendo comemorados 70 anos da Operação Overlord, como foi denominada a invasão da França, a partir da Normandia, na Segunda Guerra Mundial, e que foi pactuada pelo presidente dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt e pelo Primeiro Ministro do Reino Unido, Winston Churchil. O contingente de mais de um milhão de militares aliados foi comandado pelo General Dwigth D. Eisenhower, que mais tarde se tornaria presidente americano.
Provavelmente, um único militar nascido no Brasil participou daquela invasão, o Tenente Pierre Clostermann. Mas cerca de 25.000 brasileiros participaram da Segunda Guerra Mundial [6], nos campos de batalha europeus. À semelhança de Pierre Clostermann, todos tiveram inexcedível jornada de sacrifício e heroísmo — bem como medo, que o herói francês descreve com clareza em seus livros. Todos deram uma insuperável contribuição para que o hediondo autoritarismo nazista fosse varrido da face da Terra. É bem verdade que, em mentes perturbadas, doentias — poucas é certo! —, esse flagelo continua presente. De qualquer sorte, contraímos uma imorredoura dívida com todos os heróis brasileiros e especialmente, com as mais de quatro centenas que pereceram nos campos de batalha. Eles merecem o mesmo respeito, gratidão e homenagem que são concedidos a Pierre Clostermann [7]. Ao lado desse franco-brasileiro, todos que enfrentaram o perigo e permitiram-se a oferta da própria vida para o cumprimento da missão, são a nossa eterna referência.



[6] 
     Lamentavelmente, pouco é escrito e publicado sobre a participação brasileira na Segunda Guerra Mundial. Não raro, nossos intelectuais, e também os cineastas, ignoram essa epopeia. 
         Lembro-me que meu velho pai, na época, um lavrador semianalfabeto, que me ensinou as primeiras letras, portava consigo vários livros —  e talvez por isso, depois, conseguira ser sucessivamente tabelião do registro civil, presidente de partido político, juiz de paz e comerciante, em Rochedo, onde nasci. 
         Um desses livros, que li por volta dos oito anos e esqueci o título, fora escrito por Arabutã Sampaio do Aragarças (este nome precisa ser verificado em confirmado, quando eu obtiver o livro), oficial da Força Expedicionária Brasileira. Tratava da participação dos militares brasileiros na Itália em 1945. 
         Transcorridos 57 anos, tentei por intermédio da Internet, recuperar a obra. Não tive sucesso. Continuarei tentando. Quem sabe algum sebo ou algum descendente de participante da Segunda Guerra Mundial possa permitir que eu obtenha essa raridade. 
        Ademais, quem sabe algum dia eu possa ter a ventura de ir à Itália e percorrer o caminho que os heróis brasileiros percorreram, combatendo o bom combate. De preferência, tendo relido o livro do Arabutã. De preferência, ignorando minhas limitações e escrevendo um pequeno texto alusivo ao caminho e a esse militar que o trilhou.




[7] 
Como curiosidade, convém refletir sobre a opinião de Clostermann sobre  Saint-Exupéry, também piloto de guerra francês. Ela está relatada em:

———————————————
Clostermann e Saint-Exupéry
———————————————
[Clique para acessar ao artigo]



###

Nenhum comentário:

Postar um comentário