sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Testemunho sobre P&D de artefatos militares

A finalidade deste texto é divulgar a troca de mensagens com um amigo sobre aspectos atinentes à P&D (Pesquisa & Desenvolvimento) e produção de equipamentos militares, sob a responsabilidade e gestão do CTEx (Centro Tecnológico do Exército) — claro, valendo-me da experiência de quando lá servi de 2006 a 2009. 

As mensagens tratam de curiosidades paralelas e que quase sempre não constam dos documentos formais atinentes aos projetos. A primeira delas indagava sobre o andamento da obtenção do míssil MSS 1.2 AC (Míssil Superfície-Superfície 1.2 AntiCarro).

Não transcrevo a íntegra das mensagens recebidas do amigo interlocutor, pois além do caráter pessoal, elas podem conter dados com restrições de segurança. 

 

<Mensagem1_Amigo, 17/09/2020>

Versa sobre a solicitação de informações sobre a P&D do míssil MSS 1.2 AC. 

 

<Mensagem1_ARS, 17/090/2020>

Quando cheguei ao CTEx, o projeto de P&D  do míssil MSS 1.2 AC  estava parado há mais de 6 anos. Havia uma pendência entre os parceiros italianos e o Exército. Eles não queriam continuar o processo e nós precisávamos nos livrar deles, em especial nas questões contratuais.

Bom, na época, cheguei à conclusão de que o investimento corrigido ultrapassava 30 milhões de reais. Ora, isso não podia ser perdido. 

1.    Então, o que era preciso fazer?

1.1.  Distrato com a empresa italiana que já tinha sido comprada pelos franceses e virou MBDA;

1.2. Retomada do projeto do míssil, com atualizações requeridas, pois o tempo é crucial e causa obsolescência;

1.3. Proposta aos escalões superiores de uma encomenda, como condição para continuar investindo mais um pouco e salvar o montante total.

2.    O que foi feito?

2.1. Convencimento dos franceses, enviando à França uma equipe do CTEx e dialogando. Êxito! Eles vieram ao Brasil e, na LAAD de 2007, o Chefe do DCT e o figurão deles assinaram o distrato;

2.2. Ajuste com a empresa brasileira Mectron para a retomada do projeto, em parceria com a Divisão de Mísseis do CTEx. Era tudo que o pessoal da Mectron queria.

2.3. Proposta ao EME para a continuidade do projeto, com o aporte de recursos. Essa atribuição não me cabia, era problema do Chefe do DCT. Ele bancou. Fiz o ‘lobby’ possível nas duas instâncias superiores.

2.4. Surgiu um problema: como a encomenda do Exército era pequena, a Mectron não poderia bancar a Linha de Montagem. Saída: interagir com o setor de P&D de operacional da Marinha e buscar a participação conjunta no projeto. Os mísseis eram uma demanda dos Fuzileiros Navais. Êxito!!!

Saí do CTEx e deixei o contrato de aquisição assinado. Não me lembro a quantidade. Acho que foi cerca de 60 unidades. Os marinheiros encomendaram uma quantia maior. Li uma reportagem que os Fuzileiros Navais receberam sua encomenda (ou parte). Já faz algum tempo.

Se possível, vou procurar saber o desfecho preciso. Quando sai do CTEx, procurei fechar os olhos e ouvidos para o que estava ocorrendo lá (ensinamento de um combatente de escol).

Fraterno abraço,

RS

 

<Mensagem2_ARS, 18/09/2020>

Amigo, ontem estava meio tenso, com exames cardiológicos e uma batida do carro da esposa (nada grave, apenas uma luta titânica contra o Leviatã da burocracia).

Por isso, fiz referência correta, concernente a uma semelhança entre o pessoal da Marinha e os argentinos. Pelo risco de má interpretação, eliminei-a em minha cópia. Por favor, elimine-a ou desconsidere-a.

Abraço

RS

 

<Mensagem2_Amigo, 18/09/2020>

Esta mensagem trata da relevância das informações contidas na Mensagem1_ARS. Adicionalmente, contém questionamento sobre a interação com os franceses.

 

<Mensagem3_ARS, 18/09/2020>

Em relação à indagação sobre as peculiaridades dos franceses, aí é outra história. Interessante ! ...

[1] Estrutura de P&D militar francesa

Os americanos e os britânicos, quer dizer, o Roosevelt e o Churchill consideravam o De Gaulle um interlocutor difícil (no popular: um chato!). O Roosevelt prometeu apoio para o desenvolvimento científico-tecnológico francês após a guerra, dado que, com a invasão nazista, os franceses colocaram seus cientistas nucleares (herdeiros de M. Curie e os 5 prêmios Nobel da família !!!) para apoiar os americanos.

 

A família de Marie Curie é detentora de 5 prêmios Nobel, assim especificados:

– Marie Curie ganhou o Nobel de Física, em 1902;

– Marie Curie foi lareada com o Nobel de Química, em 1911, tornando-se o único cientista da História a ganhar dois prêmios Nobel, em duas áreas distintas da Ciência;

– Pierre Curie ganhou o Nobel de Física, em 1902, em parceria com a esposa, Marie Curie, e com o cientista Henri Becquerel;

– Irène Joliot-Curie ganhou o Nobel de Química em 1935; e

– Frédéric Joliot-Curie foi laureado com o Nobel de Química, em 1935, em parceria com a esposa Irène Joliot-Curie.

Os outros ganhadores de duas láureas foram: 

– Linus Pauling — de Química, em 1954, e da Paz, em 1962 (este fora portanto do campo da Ciência); 

– John Bardeen — ambos em Física, em 1956 e em 1972 ; e 

– Frederic Sanger — ambos em Química, em 1958 e em 1980.

 

De Gaulle queria bomba atômica, submarinos e porta-aviões nucleares.

Após a morte de Roosevelt, o De Gaulle foi cobrar do Truman o apoio prometido. Este falou que não havia documento sobre o tema (foi tratativa oral) e negou a promessa. O De Gaulle pegou as instituições de C&T de cada uma das três forças armadas francesas e constituiu uma quarta força, com uniforme próprio — a fortíssima DMA, que mais tarde se chamou DGA, com status de ministério (Délégation Ministérielle pour l’Armement, DMA, que depois se chamou Direction Générale de l’Armement, DGA).

Consequência: mais tarde, os franceses conseguiram produzir a bomba A, a bomba H, os submarinos e os porta-aviões, sem grande apoio americano.

[2] Visita de comitiva militar francesa ao CTEx

Em 2007, recebi ordem do EME para receber uma comitiva de militares franceses no CTEx. Perguntei quais eram nossos objetivos. Foi dito que era para enrolar os gringos (uso uma palavra forte para definir objetivos sem consequência).

Um general e alguns coronéis franceses chegaram no CTEx, acompanhados de um Embaixador nosso.

No cafezinho de abertura mencionei, em francês, uma frase seminal do De Gaulle, pela BBC, em 1941, conclamando os franceses a resistir aos alemães: 

“Soldats français, marins français, aviateurs français, où que vous soyez, rejoignez-nous pour défendre la patrie ...”

[“Soldados franceses, marinheiros franceses, aviadores franceses, onde quer que vocês se encontrem, reúnam-se a nós para defender a Pátria ...”]

Adicionalmente, transmiti a reação de Pierre Clostermann — nascido no Brasil e, em 1945, aos 25 anos, o maior ás da aviação de caça francesa de todos os tempos —  por ocasião da morte de De Gaule: 

“De Gaulle est mort hier soir. J’ai pleuré. Étai-ce sur moi ou sur la fin de quelque chose qui me dépasse? [...] Comme l’a écrit Roman Gary, ami et mon compagnon dans l’Ordre de la Libération: ‘Un vieil homme est parti emportant avec lui notre jeunesse; cette jeunesse que nous lui avion apportée volontairement à Londres!’”

[“De Gaulle morreu ontem à tarde. Eu chorei. Por minha causa ou por qualquer coisa que está além disso? Como escreveu Roman Gary, amigo e companheiro da Ordem de Libertação: ‘Um velho homem se foi, levando consigo nossa juventude ... a juventude que nós lhe entregamos voluntariamente em Londres’ ”].

Reproduzo de memória com o risco de imperfeição, mas era algo parecido com o que ora transcrevi. Até o Embaixador ficou surpreso. 

 

Pierre Clostermann e Roman Gary. A amizade foi iniciada quando ambos eram pilotos de guerra na Força Aérea da França Livre, em Londres, durante a Segunda Guerra Mundial. 

Gary nasceu na Lituânia, mudou-se para a França e tornou-se cidadão francês. Após o término da guerra, Gary tornou-se notável escritor, diretor e roteirista de cinema. Foi co-autor do roteiro do filme “O mais longo dos dias” (“The Longest Day”) e, por seus contatos com a sétima arte, foi marido da atriz Jean Seberg. 

Gary foi o único autor a ser galardoado duas vezes com o prêmio Goncourt, o mais importante da Literatura francesa. O procedimento para a concessão dessa comenda impunha que só fosse concedida uma única vez para a mesma pessoa. Para ganhar a segunda vez, ele concorreu com o pseudônimo Émile Ajar, fato que só foi esclarecido após sua morte, por suicídio com arma de fogo. Antes de Gary, Jean Seberg foi encontrada morta no carro às margens do Sena. No âmbito de um processo de depressão, Ela consumiu uma superdose de bartitúricos.

Afora a autoria de 11 livros, Clostermann foi deputado na Assembleia Nacional francesa em sete mandatos sucessivos. Foi presidente de uma empresa francesa fabricante de aviões e vice-presidente da Cessna.

 

 

Os militares franceses visitantes queriam acertar com o CTEx um processo de desenvolvimento de P&D conjunto e, como ponto de partida, começaria pelo Rádio Definido por Software. Eu mencionei que se o De Gaulle fosse brasileiro e considerasse benéfico para os dois lados, então nós estaríamos prontos.

Na continuidade, eu criei um constrangimento.  Como eu percebi que na essência eles queriam vender produtos. Não se tratava bem de P&D do Rádio. 

Eu peguei os folhetos que tinha obtido no pavilhão francês da 2007 Defence and Security Equipment International (2007 DSEI), em Londres (que eu tinha visitado 4 meses antes) e disse que topava fazer um projeto conjunto, em que um dos objetivos era a transferência de tecnologia. Aí, passado o desconforto, eles disseram que não podiam, explicando o longo caminho para a concretização das metas. Ingenuamente, transmiti a ideia de que desconhecia a estrutura e os procedimentos que alicerçam a Ciência & Tecnologia e a Pesquisa & Desenvolvimento.

[3] Distrato da P&D conjunta do míssil MSS 1.2 AC

Para assinatura do distrato do MSS 1.2, o Diretor da MBDA francesa (que comprou a empresa italiana parceira nossa, contratada inicial para o desenvolvimento do míssil) veio com um especialista em míssil, um advogado perito em contratos internacionais e um outro especialista em empreendimentos militares (filho de francês com brasileira), e que falava os dois idiomas muito bem.

Foram dois dias de debates, em que eles tentaram manter a propriedade da tecnologia e nós só poderíamos dispor dela mediante autorização. Claro que não aceitamos essa solução e, por pouco, o acerto não foi pro brejo.

Em nosso pavilhão, na LAAD de 2007, o chefe do DCT e o Diretor da MBDA assinaram o distrato do desenvolvimento conjunto do míssil, de acordo com o interesse das duas partes.

[4] Visita do CTEx à empresa fabricante de helicópteros em Marselha

Na compra de helicópteros franceses pelo Exército Brasileiro, embora o CTEx não tenha participado das tratativas e negociações, eu tentei pegar carona. 

Por ocasião da visita, em 2009, à 9th Internatinal Defence Exhibition Conference, em Abu Dhabi, no Emirados Árabes Unidos (a maior exposição de material de defesa do mundo), consegui autorização para na volta passar em Marselha.

Como nós estávamos próximos de produzir o Simulador SHEFE (para treinamento de piloto de helicóptero Esquilo e Fennec), a ideia era emendar e ter também o Simulador para o novo helicóptero francês.

Era preciso apoio deles, para fazer pelo preço compatível do SHEFE. O Simulador do helicóptero deles custava o dobro do preço de um helicóptero (mais de 15 milhões de euros).

Eles não sabiam, mais se nos dessem o apoio requerido, nós faríamos com menos de 8 milhões de reais (acredite se quiser !!!).

No primeiro dia, eles manifestaram entusiasmo, abriram as portas. Mais aí perceberam a qualificação do coronel Castelo e do capitão Moutinho.

No dia seguinte, fecharam as portas. Cortaram a transmissão de informações e nem deixaram a gente chegar perto do helicóptero de ponta deles, que ainda estava sujo, pois tinha acabado de chegar do Iraque ou proximidades.

Aproveitamos umas poucas coisas da visita. O longo voo que fizemos no Simulador no primeiro dia foi importantíssimo para o Moutinho adquirir uma visão quase completa das possibilidades desse artefato de treinamento de pilotos.

[5] Aquisição do radar secundário para o radar SABER M-60

No desenvolvimento do radar SABER M-60, um dos componentes importantes é uma espécie de radar secundário, com tecnologia um pouco antiga, que nós não dominávamos. A empresa Thales francesa comercializa esse equipamento (a rigor, eles fornecem também o radar de defesa antiaérea, do qual o secundário é um componente). No início de nosso projeto, consultamos a Thales e recebemos a informação de que eles nos venderiam. Não tinha cabimento perder tempo precioso na P&D de peça fora da fronteira tecnológica e disponível no mercado. Quando chegou a hora aprazada, fizemos a consulta formal e sabe o que ocorreu? Eles, que a priori não acreditavam que fôssemos capazes do respectivo desenvolvimento, mudaram e responderam: <<Non monsieur! Désolé, ce n'est pas possible!>>.

E não pararam por aí. Solicitaram audiência ao Comandante do Exército, aventaram a possibilidade de comercialização do radar de defesa antiaérea fabricado pela Thales e — da forma que mais lhes convinha —, informaram ao Comandante que a empresa brasileira Orbisat não tinha condições de desenvolver o radar e estava tentando fazer uma cópia de similar estrangeiro. Eles evitaram mencionar o CTEx, que na realidade tinha a responsabilidade pela gestão do projeto. Os fatos narrados dispensam qualquer juízo de valor.

A solução dada pelo CTEx foi curiosa. Descobriu-se que os poloneses fabricavam e concordavam em  fornecer o radar secundário requerido. O CEO da empresa parceira, a Orbisat, estava de partida para a China e dispôs-se a fazer um desvio e escala em Varsóvia, para acompanhar o coronel Castelo, gerente do projeto, na compra do componente polonês. Como não havia tempo de adotar os procedimentos administrativos de forma oportuna, cogitei de dar dispensa como recompensa para o Castelo, para que ele fosse à Polônia. O embarque seria dentro de três dias, a partir da identificação da solução.

Como sempre que adotava alguma solução fora das previsões normativas, fazia questão de informar ao escalão superior. Então, em face da urgência, entrei em contato com o Gabinete do Comandante para dar conhecimento da viagem do Castelo. Com elegância e lhanura no trato, a autoridade interlocutora desaconselhou o procedimento e sugeriu que enviasse o pedido de autorização para a viagem. Repliquei que dessa forma perderia a oportunidade de agir com o apoio logístico e financeiro da empresa parceira. Com a flexibilidade requerida, a autoridade orientou (orientou não; determinou!): “Envie o pedido de autorização e ao mesmo tempo libere o coronel para viajar. Uns 30 dias após a volta da viagem, vocês receberão a portaria e se ele tiver algum acidente grave, você e ele estarão amparados. Uma eventual explicação de inconsistência de prazo é outra história; e muito mais fácil!”. E assim os radares secundários foram adquiridos e o radar SABER M-60 se tornou realidade sem a participação francesa. Ainda bem!

Enfim, na exposição LAAD subsequente os poloneses enviaram o Ministro da Defesa ao Brasil para interagir conosco diante da possibilidade da comercialização de 40 a 60 radares secundários e outros artefatos (como estratégia de negócio, na compra de três radares secundários, eles foram informados de que as possíveis necessidades do Exército poderiam atingir o montante citado).

O coronel Roberto CASTELO Branco Jorge era o gerente do projeto Radar SABER M-60 e o capitão Maurício MOUTINHO Silva era o gerente do Simulador SHEFE. Na companhia de outros engenheiros brilhantes, líderes e comprometidos (como o coronel Castañon, major Eifler, ... et al) — apenas uma amostra que indica lapsos de memória e me submete à imposição da injustiça de não citar todos), eles constituem a plêiade de anônimos transformadores da realidade nacional de defesa.

Os artefatos citados são conquista das valorosas equipes do CTEx, em parceria com universidades e empresas. Eles são parte do seguinte conjunto de materiais bélicos que jamais tinham sido pesquisados, desenvolvidos e produzidos no Hemisfério Sul, por nacionais, com recursos e empresas nacionais:

– Radar Saber M-60 (Sistema de Acompanhamento de alvos aéreos Baseado na Emissão de Radiofrequência M-60);

– Simulador SHEFE (Simulador de treinamento de piloto de Helicóptero);

– Sistema REMAX (plataforma da metralhadora .50 para o blindado Guarani);

– Sistema MAGE (Sistema de Medidas de Apoio à Guerra Eletrônica);

– MTO (Módulo de Telemática Operacional); e

– Simulador Não Com (Simulador de Não Comunicações).

Outros projetos reforçam a qualificação dos engenheiros do CTEx e podem também ser destacados:

– Viaturas Chivunk e Gaúcho;

– Simulador de Tiro de Pistola;

– ALAC (Arma Leve AntiCarro);

– Morteiros 60 mm, 81 mm e 120 mm; e

– VANT VT-15 (Veículo Aéreo Não Tripulado-15) – aparentemente após a conclusão do protótipo, não teve prosseguimento.

A maioria dos resultados citados estão em uso no Echo Bravo de Sampaio, Osório, ...!

 

Simplificando, a gente aprende muito negociando com os franceses. Eles são uns ‘son of a bitch’ em estado puro.

Abraço fraterno,

RS

 

<Mensagem3_Amigo, 18/09/2020>

Versa sobre tentativas de obtenção de sistemas simuladores e da similaridade entre o sistema SIMACA, para Artilharia e o Simulador SHEFE, para treinamento de piloto de helicóptero.

 

<Mensagem4_ARS, 19/09/2020>

Como você conhece o Simulador SHEFE, vou jogar um pouco mais de conversa fora. Como é que ocorreu a P&D dessa inédita conquista?

No início, eu escolhi um capitão de 33 anos para a gerência do projeto. Como, com essa idade ele já era PhD numa área afim, entendi que era a decisão correta. Doutorado em universidades boas é somente para privilegiados.

Com dois meses, foi constatado que ele não aguentava o tranco. Um misto de problema de saúde com inflexibilidade indicaram a substituição. Então, escolhi o capitão Moutinho para tocar o projeto. Por que?

O Moutinho fez mestrado na Universidade de Cranfield, ligada ao Ministério da Defesa britânico. Ao final, ele ganhou 4 prêmios, no universo de 600 mestrandos de 41 países (claro, a maioria britânicos). E ganhou também um doutorado no valor de 90.000 libras.

Com 8 meses à frente do projeto do Simulador, ele chegou pra mim e disse que fora chamado para retornar a Cranfield e fazer o doutorado. Disse-lhe para preparar a documentação e eu agiria junto ao EME para viabilizar a ida com apoio do Exército. Ele me respondeu que não iria porque “o  projeto do Simulador não tinha atingido a situação de ‘Não-Retorno’ ”. 

Alguns meses se passaram e, num despacho, o Moutinho me disse que era piloto. Ótimo, respondi, isso facilita seu trabalho. Ele riu e disse que, como não tinha dinheiro para pagar hora de voo, 4 anos atrás, ele projetara e construíra um simulador para simular o voo em seu apartamento. Nunca tinha dito isso na caserna.

Um dia, o dono da empresa parceira (de São José dos Campos, pequena e com uns outros 3 ou 4 projetos de outros clientes) fez uma espécie de reclamação, por óbvio, meio rindo. Ele disse que o Moutinho assumiu, por telefone, a gestão de sua empresa; e os demais engenheiros e funcionários só faziam o que o Moutinho determinava. O cara ria porque era preciso apoio do IME, ITA e até da USP. Isso só o Moutinho desenrolava.

Nesta narrativa, cabe uma observação sobre recursos humanos. Em 2010, visitei um centro de P&D chinês e também fábrica de produtos eletrônicos, com mais de 1000 radares produzidos. Eram 4.000 engenheiros, mais de 500 doutores e mais de 1000 com mestrado. Não devemos nem podemos copiar o que os chineses fazem, mas devemos agir nas proporções adequadas e requeridas.

Virou novela, mas devo lhe dizer que foi preciso vencer resistências no Comando de Aviação. O tenente-coronel encarregado da seção que cuidava de voo por instrumento não queria saber de nosso trabalho — ele declarou que faria simuladores com seus sargentos mecânicos de helicóptero. E também na DMAvEx e até no EME. Se eu tratasse da questão com o formalismo habitual (no meu nível hierárquico e de gestão), o fracasso era provável. Solução: orientava o Moutinho para tratativas no nível hierárquico dele, com interlocutores majores e tenentes-coronéis. O caboclo tem uma inteligência emocional fora do comum e conseguiu vencer as resistências.

O Simulador ficou pronto !!!

E o Moutinho, onde anda?

Foi chamado uma segunda vez para o doutorado e por razão similar recusou. Um ano depois que saí do CTEx, ele me ligou para dizer que na terceira vez, aceitou o chamado. Foi para Cranfield, retornou PhD e, 4 anos após ter completado o tempo obrigatório de permanência no serviço ativo, pediu transferência para a reserva.

Hoje é consultor da AIEA em Viena. Não foi indicado pelo governo brasileiro. Conquistou por seus próprios méritos.

O que eu faria com o Moutinho, se poder tivesse? Criava um instituto de P&D para ele chefiar até morrer. A União Soviética fez isso com o Stanislav Shumovski, que levou a tecnologia de artilharia, de aviação e nuclear dos Estados Unidos para seu País; o Paquistão fez isso com o Abdul Khan, o doido que depois de dominar a tecnologia da bomba atômica, queria vendê-la para outros países; a China fez isso com Qia Xuesen, o pai dos programa de mísseis intercontinentais chineses; e os Estados Unidos fizeram algo parecido com o Robert Oppenheimer (padastro das bombas atômicas jogadas em Hiroxima e Nagasaqui que, entre outras dúvidas, namorava uma comunista e portanto era suspeito).

Enfim, cada doido com sua circunstância. Uma análise cuidadosa mostra que caboclos desse naipe são responsáveis por grandes transformações.

Eu até acho que você não tem o desplante de ler as bobagens que escrevo. Como tem o isolamento da pandemia, tudo é possível.

Abraço fraterno,

RS

 

<Mensagem5_ARS, 21/09/2020>

O relato relativo à situação do Míssil MSS 1.2 AC refere-se ao período em que chefiei o CTEx, isto é, de 2006 a 2009. Seguem informações adicionais.

A partir de 2010, quando fui para o DCT, o projeto teve andamento e enfrentou três problemas sucessivos ao longo dos últimos 10 anos.

P1. Problema técnico. Os mísseis produzidos não funcionavam por falha do giroscópio. Essa questão foi equacionada.

P2. Problema administrativo. A empresa parceira Mectron foi comprada pela empresa Odebrecht. Em 2016, esta saiu do setor de Defesa (a corrupção devia ser mais rentável ...) e uma empresa chamada SIATT herdou o espólio e prosseguiu com o projeto do míssil.

URL da SIATT: https://www.siatt.com.br/siatt/

P3. Problema técnico - O míssil não funcionou adequadamente por falha no Receptor Laser.

Eu não tenho dados para fazer juízo de valor sobre a eficácia dos trabalhos no período de 2010 a 2020. Posso afirmar que o sucesso da maioria dos empreendimentos, em especial de P&D, depende de dois aspectos imprescindíveis: “sorte” e talento. Traduzindo, é razoável asseverar que, em uma visão mais estruturada, podemos elencar dois componentes: um cérebro excepcional (como por exemplo: os brasileiros Moutinho, Castelo e outros, o americano Robert Openheimer, o soviético Stanislav Shumovski, o paquistanês Abdul Khan e o chinês Qia Xuesen, ...); e disposição incomum para enfrentar o Leviatã (conjunto de obstáculos normalmente enfrentados em empreendimentos complexos).

E o futuro? A disponibilidade do míssil MSS 1.2 AC para as forças armadas brasileiros está condicionada a três circunstâncias favoráveis:

(i)       o Exército precisa e quer o míssil, vale dizer, o artefato não está obsoleto para a nossa realidade;

(ii)     o atual Chefe do CTEx demonstra robusta vontade e acredita na possibilidade de finalizar o projeto com sucesso (os engenheiros do CTEx e a empresa SIATT têm que resolver o problema técnico e o CAEx tem que fazer a Avaliação Operacional); e

(iii)   aparentemente, a Marinha continua interessada no êxito do projeto. Os mísseis que ela recebeu não funcionam com eficácia e ela tem necessidade e tem vantagem com a cooperação.

Esses são os dados e respectiva percepção. Como muitas outras coisas na vida, precisam ser confrontados com os dados e respectivos juízos de outras pessoas ou instituições. Possivelmente, eventuais incorreções do que mencionei são pouco relevantes e não retiram a validade das conjecturas e inferências.

Fraterno abraço,

RS

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