quinta-feira, 2 de abril de 2015

O nascimento de Laura

Laura nasceu. Não a nossa Laura, mas uma pequenina que chegou cercada de circunstâncias curiosas. Pois é, milagres existem! A começar pela aproximação afetiva de duas pessoas, da evolução interativa, do prazer que origina os demais milagres: a fecundação, o desenvolvimento e formação de um novo ser e o nascimento. É tecnologia em estado puro, natural — tecnologia divina para uns, pujança da natureza para outros. Os adeptos, os fanáticos pela tecnologia queiram desculpar, mas é impensável imaginar que o homem conseguirá repetir artificialmente esse prodígio natural. Será?
Voltemos à Laura. Seu pai, um planejador rigoroso, pensou em tudo a partir do início da gravidez da esposa. Ele relacionou todos os passos, todas as atividades que teria que executar para que o nascimento — um evento singular e mágico — tivesse pleno sucesso. O estado de funcionamento do carro era verificado com frequência incomum na oficina de seu amigo. O tanque era abastecido com regularidade, de tal sorte que só era aceitável que a gasolina chegasse, no mínimo, a três quartos da capacidade. Nos três meses que antecederam o período previsto para o parto, uma vez por semana, ele dirigia de sua casa até a maternidade — um trajeto de 30 quilômetros — para estar completamente seguro de que, no dia aprazado, não teria dificuldades no trânsito. Leu a bibliografia disponível e aconselhável sobre o nascimento de bebês. A mala com todos os objetos recomendados pelas tias, avós, obstetra e palpiteiros de plantão ficou pronta com dois meses de antecedência e estava sempre ao alcance da mão.
Enfim, o dia esperado chegou. No final da madrugada, a esposa deu o sinal de alerta. A expectativa e a emoção aumentaram. Estando preparados, ele carinhosamente tomou o braço da esposa, encaminhando-se para a garagem. Ao abrir a porta do carro, a esposa disse:
— Eu acho que não vou conseguir chegar no hospital. Minha percepção é que nossa filha quer nascer agora.
Mas como? O que está acontecendo? Indagou o marido.
   Estou sentindo dores e contrações anormais.
Em seguida, ela deitou-se no piso da garagem, caracterizando que a situação limite havia chegado.
O marido havia pensado em tudo, mas não pensou no imponderável. Começou a suar frio, hesitou por alguns instantes, tentou ordenar o raciocínio e só conseguiu inferir que estava diante de uma emergência. Então, lhe ocorreu ligar para o telefone 190. Explicou o que estava ocorrendo e recebeu a recomendação de que tinha que fazer o parto. Seria o obstetra da própria filha sem ter qualquer conhecimento de enfermagem. A sorte estava a seu favor. A policial que o atendeu era tranquila, qualificada e se prontificou em transmitir, passo a passo, a orientação necessária. Recobrado do susto inicial, o pai colocou o celular no piso, na condição de viva voz, e o milagre tomou a conformação de normalidade emergencial. Ouvia a orientadora e retransmitia para a esposa.
     Você vai deitar-se, apoiar a cabeça na sacola de pertences, relaxar e respirar compassadamente.
     Isso mesmo, você começou muito bem — Afirmou a policial pelo 190 — Agora diga para ela fazer força.
     Força, benzinho!
A policial tentou caprichar no tom de voz.
     Não é desse jeito não. Fale firme, como homem!
Ele tentou calibrar a firmeza, para não atingir a grosseria.
     Força, mulher! Força mesmo! Isso, isso mesmo, está saindo!
Virando-se para o celular.
     Saiu a cabeça e agora?
     Você tem que ajudar. Insista para que a respiração seja compassada, para que ela continue fazendo força. E então pegue a cabeça do bebê e puxe.
     É para puxar com força?
     Com força não, cara pálida! Com uma firmeza suave, senão você vai arrancar somente a cabeça do bebê.
     Ah, bom! Continua saindo. Os dois ombros já estão de fora!
     Continue desse jeito, com calma, transmita confiança para a mãe.
E assim seguiu por alguns minutos, todos parecendo ter mais de 100 segundos cada um.
     Pronto, nasceu! Nasceu! É menina! É a Laura!
A mãe, tão calada até agora, expressou toda a emoção.
—   Minha filha! Minha filhinha! Graças a Deus!
     E que você fez com ela? Perguntou a policial.
     Eu a abracei, eu estou abraçado com ela.
     Homem tonto! Com uma das mãos, segure-a cuidadosamente pelos pés, mantendo-a pendurada de cabeça para baixo e bata com a outra mão nas costas, até ela chorar e depois, coloque-a sobre o peito de sua mulher. Não esqueça: você não é a mãe, você é o pai.
     Já coloquei. E agora, o que faço?
Você vai cortar o cordão umbilical, dando-lhe um nó no toquinho que restar junto à barriga do bebê.
     Mas como é que vou cortar? Com que?
     Você não tem uma tesoura, uma faca e um pouco de álcool para desinfecção?
     Aqui na garagem, só tem alicate ....
     Homem alienígena, o alicate, você o pegue, prenda sua própria orelha ou nariz com bastante força e puxe prá valer.
Após um silêncio constrangedor, a policial continuou.
     Após cortar o cordão, espere uns instantes e faça a higiene do bebê.
     Com que? Como? No chuveiro?
     Com as mãos, com toalhas úmidas e, especialmente, com o intelecto. Você sabe o que é isso?
     Não sei não. Depois eu te telefono prá você me explicar. E depois da higienização? Eu estou na garagem.
     Você permaneça aí com calma e transmitindo tranquilidade para sua esposa. A ambulância que eu acionei no primeiro momento estará chegando em sua casa em 5 ou 10 minutos. Vocês irão para a maternidade.
E assim a Laura chegou, sem ter desejado, senão pelos desígnios insondáveis que perpetuam a espécie humana. Ela se tornou bebê, milagrosa e magicamente! E aguarda tornar-se menina, moça, mulher e seguir em frente, em busca de seu destino, preferencialmente, reproduzindo a tecnologia que qualquer homem dificilmente ousará repetir de forma não natural.
PS. Laura é real. Ela é filha de um pai organizado e perspicaz. Ela nasceu na garagem. O fato foi divulgado pela televisão.

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