Como prometi, em resposta à sua
mensagem pedindo minha opinião sobre uma eventual saída de casa e ida para
longe, talvez para o exterior, vou tentar relatar alguns exemplos de
empreitadas que se enquadram em seu questionamento e depois vou propor ideias
para sua reflexão.
Vou me ater aos seguintes fatos:
– Saída
do Oscar da Bahia;
– Minha
saída de Campo Grande;
– Volta
ao mundo de um engenheiro em bicicleta;
– Travessia
do Atlântico pelo Amir Klink em canoa;
– Trabalho
do Agton no Japão; e
– Passagem
do Delaorzinho, Sabrina e Cynthia pela Austrália.
Saída do Oscar da Bahia
Em 1931, ao completar 18 anos,
Oscar decidiu deixar a Bahia e buscar seu destino em estados mais promissores.
Passou alguns meses em Minas Gerais trabalhando na lavoura. Depois seguiu para
São Paulo, onde participou do desmatamento para a implantação de agricultura. O
trabalho era pesado e realizado em condições adversas, com insuficiência de
alimentação e salário baixíssimo.
Após a jornada paulista, ele
seguiu para o Norte de Mato Grosso (à época, o segundo maior estado da
Federação, pois ainda não tinha sido dividido), para trabalhar no garimpo de
diamantes. Tratava-se de trabalho pesado, com a participação majoritária de
aventureiros que não tiveram sucesso em suas regiões de origem. A atividade
garimpeira se inseria em ambiente de incerteza na descoberta do mineral
precioso, com salários insuficientes e com a predominância de lazer apoiado em
farra, com bebida alcoólica e prostituição.
No final da década de 1930,
Oscar seguiu para o Sul do estado e continuou trabalhando no garimpo, em
Rochedo, Corguinho e Fala Verdade (Baianópolis). Nessa época, ele labutou também
na agricultura e pecuária; conheceu e trabalhou com o fazendeiro Antonio
Deolindo, chefe da família de sua futura esposa. Assim, no segundo semestre de
1944, casou-se com Zica, uma das filhas de Antonio.
O restante da história de seu
avô Oscar, você conhece. Que razões podem ser atribuídas à prevalência de mais
êxitos do que insucessos na vida do velho Oscar, mesmo tendo vivido sua
aventura em circunstâncias tão desfavoráveis, e sem qualquer planejamento de
vida? Acho que a resposta está em algumas características do perfil
comportamental e físico de Oscar, cuja caracterização pode englobar:
– era
muito forte, corajoso e trabalhador e, por isso, angariava respeito;
– não
mentia, agia com correção e decência e era, portanto, confiável;
– não
bebia, não participava de farras e era conservador nas horas de lazer; e
– não
fazia compromissos que não pudesse cumprir e, particularmente, não contraía
dívidas.
Atribuo a esses atributos os
fundamentos para que Oscar tenha garantido o respeito de quantos o conheceram
ao longo de sua vida. Esses fundamentos respondem também pelo sucesso
profissional e familiar que ele angariou em sua trajetória que, não raro, teve
situações de ousadia e aventura — êxitos modestos em uma análise ampla, porém,
enormes se consideradas sua origem e seu grau de escolaridade.
Minha saída de Campo
Grande
Em 1965, estava com os quatro
manos em Campo Grande. Àquela época, cheguei à conclusão de que cinco filhos
dando despesa para os pais era uma responsabilidade financeira enorme. Se eu
tivesse uma maneira de não depender de papai e mamãe, possivelmente, os manos
seriam beneficiados. Então, decidi tentar sair de Mato Grosso em busca de meu
destino.
Uma das formas de quebrar a
dependência financeira dos pais era o ingresso nas Forças Armadas. Percebi que
poderia tentar ser aviador e também engenheiro. Fiz o concurso para a Escola
Preparatória de Cadetes do Ar (EPCAr), localizada em Barbacena. Tive êxito nas
provas e fui admitido naquela escola da Força Aérea Brasileira. Como você bem
sabe, depois transferi-me para a Academia das Agulhas Negras (AMAN), do
Exército.
Acho que a minha saída de casa e
de Mato Grosso levou em conta algumas condicionantes. Havia um objetivo bem
definido e eu sabia para onde ia e em que condições iria viver, especialmente,
no que diz respeito aos meios. Afirmo com ênfase que a EPCAr provia condições
de moradia, alimentação, assistência de saúde, escola gratuita e até mesmo uma
pequena mesada mensal.
Vale a pena sintetizar os
seguintes aspectos que não podem deixar de ser considerados: a formulação de
objetivo de curto e médio prazo; a identificação do local para onde ir; a
caracterização das condições de vida que serão enfrentadas; e, por último e
essencial, os meios, as fontes de recursos com que se vai contar. A bem da
verdade, naquela época eu não tinha muita consciência disso. A rigor — por
paradoxal que pareça — só agora, consigo dar essa interpretação e assimilar a
lição. Então, o destino e a sorte foram padrinho e madrinha.
Volta ao mundo de um
engenheiro em bicicleta
No ano de 2000, eu era Adido
Militar (Adido da Aeronáutica, do Exército, da Marinha e de Defesa é o nome
completo da função) junto à Embaixada do Brasil em Teerã, capital do Irã. Lá,
tive a oportunidade de conhecer um brasileiro que estava dando a volta ao mundo
de bicicleta. Ele é engenheiro formado na USP, trabalhava em uma empresa
estatal de São Paulo e deixou o emprego para viver a aventura de circular em
todos os continentes, pedalando.
Ele foi à Embaixada de Teerã
para obter o visto no passaporte. Conversei um bom tempo com esse aventureiro.
Depois da jornada iraniana (ele cruzou o Irã de Norte a Sul), ele percorreria
sucessivamente — pedalando, enfatizo — Afeganistão, Paquistão, Índia, países do
Sudeste asiático, e depois seguiria de avião para a Austrália.
Deve ser notado que ela deixou a
estabilidade de um emprego considerado bom e com perspectivas de boa evolução
profissional para enfrentar incerteza, dificuldade e adversidades imprevistas.
Por que? Segundo ele, pelo sabor do desafio e da aventura, e porque tinha
objetivos relevantes.
Ele era aficionado por bicicleta
e, antes do início da viagem, pedalou no dia a dia brasileiro por quase dez
anos. Começou a pensar na viagem e preparou-se durante cinco anos. Nesse
sentido, aperfeiçoou o melhor que pôde o inglês; estudou detalhadamente o
provável percurso; estabeleceu contatos em cada região em que passaria —
curiosamente, deu ênfase para moças que fossem possíveis namoradas em cada
país; e planejou a meta fundamental a que se propunha, isto é, angariar
conhecimento e escrever dois livros; devendo-se notar que ele partiu do Brasil
com os possíveis índices dos livros já prontos.
À primeira vista, ele poderia
ser considerado um irresponsável. Aprofundando-se a análise, constata-se que
sua façanha obedeceu a inequívoca responsabilidade, fundada na lógica e na
razão.
Travessia do Atlântico
pelo Amir Klink
Não sei se vale a pena me estender
muito na épica travessia do Atlântico, pelo Amir Klink, remando. A estória é
bem conhecida. Vale a pena recordar que ele deu partida no projeto depois de
completo estudo de todas as condicionantes da empreitada.
Então ele empreendeu pesquisas
ambientais, atmosféricas, marítimas, de navegação (estabelecendo, por exemplo,
meios alternativos para — se todos os meios artificiais de orientação falhassem
— observando os astros, não se perder), de condicionamento físico, de
alimentação marinha e, entre outros, de cuidados de primeiros socorros. E por
último e mais importante de tudo, ele alinhavou todos os riscos possíveis que
poderiam ameaçar o sucesso da aventura. Ademais, para cada risco identificado,
ele estabeleceu a ação que deveria realizar para vencer o obstáculo e seguir em
direção ao objetivo colimado.
O caso do Amir Klink é o melhor
exemplo de empreendimento com probabilidade de erro próxima de zero.
Trabalho do Agton no
Japão
Não pretendo tratar dos detalhes
da jornada japonesa do Agton. Em primeiro lugar, meu conhecimento sobre ela é
superficial; e também porque estando próximo do mano, você pode conversar com
ele, horas e mais horas, e assimilar os aspectos essenciais.
Eu gostaria apenas de mencionar
que ele estabeleceu objetivos para ir para o Japão e fez boas conjecturas para
os meios de sobrevivência à disposição naquele país.
Passagem do
Delaorzinho, Sabrina e Cynthia pela Austrália.
Da mesma forma que no caso da ida
do Agton para o Japão, não tenho informações suficientes para analisar o mestrado
que o Delaorzinho fez na Austrália e as viagens da Sabrina e da Cynthia, no
aproveitamento do êxito da experiência do noivo e irmão, respectivamente.
Isso não é problema, pois a
proximidade e a consideração que todos eles têm por você facilitarão o contato
pessoal e a coleta de informações que vão lhe permitir a organização do
processo de tomada de decisão.
Algumas inferências
Com a análise — às vezes
incompleta, às vezes superficial; e com certeza, submetidas às minhas
limitações — do que considero seis estudos de caso, creio que é possível
amadurecer de forma mais adequada a possibilidade de empreender uma aventura de
afastamento do torrão natal e das pessoas que lhe estão próximas, pelo sangue e
pela pouca distância.
Os seis casos englobam pessoas comuns
(as de nossa família) e outras nem tanto (o engenheiro ciclista e o remador
Klink). Se conveniente, em outra ocasião, poderei tratar também de três casos
relatados no livro The smartest kids in
the world: and how they got that way. Refiro-me aos adolescentes americanos
Kim, Eric e Tom que, em programas de intercâmbio, passaram um ano na Finlândia,
Coreia do Sul e Polônia, respectivamente.
É oportuno ressaltar que, à
exceção da saída da Bahia do seu avô Oscar, todos os demais casos que mencionei
se enquadram no binômio conhecimento e responsabilidade. Uma metáfora boa para
esse binômio é o conjunto de variáveis que respondem às perguntas: ONDE?
QUANDO? COMO E QUE MEIOS? QUE PESSOAS? QUE OBJETIVOS? QUE RISCOS? QUE
RESULTADOS?
Definido o local ou os locais,
cabe rigoroso estudo de tudo que tiver impacto em uma eventual ida para
alhures. A geografia (relevo, clima,
cidades, população etc), a economia (custo de sobrevivência, possibilidade de
emprego de estrangeiros etc), o idioma, a religião predominante e os costumes
devem ser vasculhados e identificados.
O período deve ser pesquisado,
especialmente, no que se refere a condições climáticas e ambientais. E também
porque a volta às origens está na maioria dos casos relatados e deve ser um dos
objetivos. Vale recordar que meu pai, o velho Oscar, só voltou à Bahia depois de vinte e
cinco anos sem dar notícias para a família. É um ponto fora da curva. Será que
a saída dele foi uma fuga ou suas circunstâncias ditaram-lhe o que fazer? Ele
nunca tratou dessa questão conosco.
Como e com que meios sobreviver se
relaciona com recursos para deslocamento, moradia, saúde e alimentação —
evidentemente, os meios têm importância capital, dado que sem pelo menos um bom
bife semanal, a sobrevivência é improvável.
Possível contatos prévios com
pessoas dos locais para onde vamos é um dos fatores mais importantes. Nunca
estamos sós, por mais que, às vezes, queiramos. Permita-me um exagero: estive
na Sibéria e na Antártida e, sem pessoas para interagir, haveria uma
impossibilidade lógica de ter ido lá. Até onde sei — e posso estar errado —, na
travessia do Atlântico, o Klink se comunicava com pessoas.
A formulação de objetivos é um
dos atributos essenciais da condição humana. É por isso que não somos
inanimados, não somos vegetais e nem animais irracionais. Temos a obrigação de
saber o que queremos.
A análise de risco condiciona a
eliminação ou redução de causas de insucesso. É a garantia da possibilidade de
êxito. Saber o que fazer quando as coisas estão dando errado diferencia pessoas
e explica porque alguns conseguem e outros não.
Obviamente, os objetivos são uma
promessa de intenção. O que move, importa e caracteriza a vitória são os
resultados. Sem definir objetivos e resultados, qualquer caminho serve (paródia
de provérbio chinês).
Por último e fundamentalmente
importante: você pediu meu conselho. Você me enviou um problema e eu estou
devolvendo dezenas de problemas, todos sem solução. Sei que isso é terrível.
Mas não consigo olhar essa questão de outra forma. Você não deve e não pode
transferir a responsabilidade de sua decisão para outros, por mais confiáveis
que sejam. A decisão e a responsabilidade são suas. O que posso oferecer?
Ideias para reflexão, amadurecimento e formulação do processo que lhe
interessa. É o que tentei.
Então, assevero:
feita a análise, submetidos os resultados à reflexão, caracterizados todos os
aspectos essenciais e identificadas as vantagens e desvantagens, se você chegar
à conclusão de que o projeto é viável e bom para você, minha opinião é que você
não deve hesitar e deve seguir em frente.
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